domingo, 28 de abril de 2013

A arte de levar barata por grilo – Pinóquio, de Winshluss




Winshluss, pseudônimo de Vincent Paronnaud, quadrinista e diretor conhecido pelo trabalho na premiada animação Persépolis, baseada na obra de Marjani Satrapi, ganhou também o prêmio de melhor álbum no Festival International de la Bande Dessinée por Pinóquio, trabalho que a editora Globo lançou por aqui no segundo semestre de 2012. Nele, o autor apresenta uma nova versão para o clássico infantil, reatualizando seus temas e se estabelecendo como um dos autores mais competentes e inventivos dos quadrinhos europeus atuais.
A história começa com duas tramas iniciais, a de um barril de material nuclear jogado no mar e a de um homem que, após observar sua vizinha da janela, decide jogar roleta russa acompanhado de seu gato. Ambas parecem não ter nada a ver com a história que conhecemos de Pinóquio. Só parece. Após o fim deste preâmbulo, somos apresentados aos personagens reformulados do clássico original. Gepeto é um inventor de armas bélicas, sendo Pinóquio sua nova criação: um robô repleto de armas e sem nenhuma consciência do certo e do errado (o que o torna muito semelhante ao menino de madeira do original). Somam-se aos dois a barata Jimmy, que após ser expulsa de sua moradia decide morar na cabeça do autômato, servindo de consciência para sua trajetória, a exemplo do que fizera o grilo falante (mais na adaptação da Disney do que no texto original).
Dessa forma, é acertada a escolha de usar texto escrito apenas nas cenas em que o inseto aparece – principalmente, se lembrarmos que ele aspira ser escritor –, deixando a seu encargo a consciência textual da obra (ao fim desta resenha, suponho por que razão). Além disso, os episódios envolvendo o inseto – “As aventuras de Jiminy Barata” – são todos em preto e branco e intercalam desde episódios prosaicos (uma bebedeira com um amigo) até questões existenciais (a visita de um crente que carrega a palavra do senhor, a consciência da própria pequenez ao ler O idiota, de Dostoievski). A ausência de cores contrasta este universo especulativo, com as inúmeras técnicas, estilos e materiais de colorização e desenho utilizadas na fábula, com destaque para as páginas inteiras, excepcionais e que relembram as ilustrações dos livros infantis, além de pontuarem a divisão dos capítulos.
A estrutura episódica do original é rigorosamente respeitada (ao contrário do que alguns resenhistas vêm dizendo). Também aqui temos assassinos a espreita em todos os cantos, também aqui a ganância e a preocupação com o enriquecimento move a intriga, também aqui o herói é vendido para lucro alheio. Contudo, diferente do original, este Pinóquio não escolhe nada, não tem opinião, não fala, diferente do verborrágico boneco original. Neste, o protagonista é uma massa inconsciente de destruição, manipulada ao gosto dos demais, sendo explorado no trabalho, enforcado, e saciando o desejo sexual dos demais, o que também favorece as inúmeras identidades visuais adquiridas pelo álbum.
A sequência lógica dos acontecimentos segue fidedignamente os ocorridos do trabalho de Collodi. O peixe cão do original é substituído por um monstro marinho geneticamente modificado pelo barril da introdução (p. 65). No lugar do teatro de marionetes, temos Stromboli fabricando brinquedos e empregando Pinóquio em uma fábrica. Ao invés de fada madrinha, surge aqui a fada da eletricidade (90-91). Mantém-se do original também a natureza aleatória dos encontros, o cronotropo da estrada como lugar onde o imprevisível emerge. A imprevisibilidade (inerente também ao próprio herói) complementa a impossibilidade de sabermos quais histórias irão se cruzar, a exemplo do contato entre as vidas do policial e da nova versão da Branca de Neve no desfecho da obra.
A execução da narrativa é primorosa. Já na virada da primeira para a segunda página, o oceano se transforma no interior de um copo, numa transição material entre dois universos distintos, mas que, compositivamente, são o mesmo, se unem da mesma forma orgânica que todas as demais. Em certas passagens são sutilezas miméticas que garantirão a invasão de diferentes perspectivas em quadros contíguos, como na cena em que Pinóquio mata a mulher de Gepeto. Aqui, as bordas da imagem usam um preto e branco assemelhado ao dos quadros em que a barata transita, o que importa sua lógica anárquica para o início subversivo da história da pequena máquina de combate.
Outra forma de situar a sincronicidade de muitas histórias ocorre por intermédio das diversas camadas que compõe os quadros ou a passagem entre eles. Um ótimo exemplo disso é a cena em que o helicóptero de Stromboli cai. Numa perspectiva distante e em primeiro plano (p. 36), vemos um casal pensar que se trata de um cometa. As ideologias interpostas também subdividem as temáticas do álbum em níveis. Basta lembrar que, aqui, Pinóquio é enforcado por não se deixar levar pelo discurso extremista (remetendo ao nazismo) de um ascendente ditador (p. 83). Mesmo o momento em que o boneco está pendurado por seu pescoço insere muitas histórias paralelas à sua como pano de fundo.
Anárquico, subversivo e provocante, Winshluss não se furta sequer de possibilitar que o leitor infira um conceito de poética, por trás de seu trabalho. Esta se encontra na cena em que um pintor pinta, sobre a figura do rei antigo, a imagem da nova autoridade real (p. 89). No procedimento, uma contundente crítica a arte conservadora que substitui um tema por outro dentro da mesma moldura representacional, algo que esta releitura de Pinóquio evita a todo custo.
Na metade do volume um entrevistador, falando do personagem principal do livro de Jiminy explica, usando as palavras do inseto autor, que ele é “[...] fruto da união da minha época e suas mentiras” e segue afirmando: “ ‘Um pensamento em mutação não encontra espaço nesta sociedade de certezas’” (p. 99). O inseto conjuga o semema mais amplo da obra original, ou seja, os hábitos mitômatos do boneco, ao desenvolvimento histórico da narrativa e enfatiza, na segunda citação, o desenvolvimento morfético de seu herói. Este novo Pinóquio conduz a representação de um novo tempo em que o imprevisível, o inconsciente, e o aleatório podem sim se conjugar em um tipo diferenciado de fábula. Uma narrativa por outra. A arte de levar barata por grilo.


WINSHLUSS. Pinóquio. São Paulo: Globo, 2012.

Autor: Daniel Baz

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