domingo, 12 de agosto de 2012

Como concordar com o absurdo ou “Festa no covil”, de Juan Pablo Villalobos



Também os narcotraficantes mexicanos mais perigosos têm filhos, e até suas crianças começaram pequenas a desbravar uma realidade temperada de cabeças cortadas, codinomes caricatos, samurais e hipopótamos anões da Libéria. Pelo menos é assim em Festa no covil, primeiro romance de Juan Pablo Villalobos. A história é narrada pelo pequeno Tochtli, de oito anos, filho de Youcault, um poderoso chefe do narcotráfico. O menino, apesar da pouca idade, tem uma série de obsessões, como chapéus e os mencionados hipopótamos exóticos. De fato, o romance se divide em três partes para narrar, na primeira, a apresentação dos personagens e deste incomum objeto de desejo do menino, na segunda, a viagem realizada para buscar os animais e, na terceira, uma crise entre os personagens e a resolução da busca.
O romance começa com Tochtli demonstrando algumas das palavras difíceis que sabe: sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante. (p. 9). Na lista já há pelo menos duas constantes que definirão a obra. Primeiramente, demonstra a linguagem natural e constatativa, típica de dicionário, ainda que utilizada ao narrar situações nada naturais.  A segunda constante, deriva da sensação de não pertencimento, que, se começa com uma linguagem natural para falar de situações inusitadas, dilui-se por todos os demais aspectos do texto.
Além disso, estas palavras serão muitas vezes usadas fora do lugar apropriado, como logo na primeira página, quando Tochtli diz que sua memória é “fulminante”. Dificuldade em apreender o mundo pelas palavras que, ao fazer emergir sentidos deslocados de seu uso, denotam a posição também deslocada do herói no mundo. Ainda quanto a sua linguagem, um dos principais procedimentos utilizados pelo escritor são as construções paratáticas, isto é, sem conectores que liguem uma frase à outra. Sendo assim, cada período é uma realidade particular e à parte na obra. Tratam-se de gestos autônomos que não se conectam no plano da expressão. Este uso erradica da linguagem as relações de casualidade entre as frases, o que aumenta os sentidos possíveis e subverte o tema da hereditariedade, central durante todo o livro. O trabalho interpretativo também é mais enfatizado, pois as lacunas são muito mais substanciais, o que ajuda a representar a natureza fragmentária da forma como o menino compreende o mundo. Ao privar a linguagem das estruturas conectoras, o autor realça sua inconseqüência, sua gratuidade, e explora o caráter gratuito e alógico também da realidade, ao privá-la dos procedimentos lógicos de construção.
Outro recurso particular presente na linguagem do menino são as estruturas de generalização, seguidas de particularização. Estas são da mesma natureza do fenômeno anterior, afinal, unem duas realidades, uma macro e outra micro, num jogo de idas e vindas que representam a situação narrativa. A saber: um contexto amplo e complexo visto pelos olhos de um indivíduo muito peculiar. Alguns dos exemplos são:

“E não é só esse filme que sei de cor, sei muitos outros, quatro.” (p. 12)
“É por isso que conheço poucas pessoas, treze ou catorze.”(p. 15)
“Eu tenho muitos chapelões de charro, seis. (p. 30)

As passagens que unem tudo que foi dito até aqui são intensas, como no seguinte monólogo muito esclarecedor de Tochtli: “Na verdade existem muitos jeitos de fazer cadáveres, mas os mais usados são com os orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem orifícios e as facas também podem fazer orifícios. Se o seu sangue vaza, chega uma hora que o coração ou fígado param de funcionar. Ou o cérebro também morre. E você morre.”(p.16)
Neste ponto, o único uso de conexão textual é dado pela coordenação (procedimento que mantém as frases em autonomia), ou pelo link condicional “se”, que serve como um conector interno e não entre frases. Contudo, apesar da sintaxe frouxa, a obra não se furta a produzir analogias que auxiliem a interpretação, como metáforas muito bem utilizadas, das quais se destaca aquela que utiliza os animais que estão presos na casa de Youcault, como tigres e leões. Eles simbolizam a ferocidade latente do lugar, além de também representarem elementos que não deviam estar ali, seres deslocados, fora de seu habitát natural, como o garoto.
Falamos antes da relação entre microcosmos e macrocosmos que se conjugam durante todo o texto. Uma das mais fortes refere-se a uma ideia de nação que pode ser construída a partir do livro. As próprias contradições pelas quais passam o garoto podem ser traduzidas como sintomas do terceiro mundo, como fica claro em: “Parece que a Libéria é um país nefasto. O México também é um país nefasto. É um país tão nefasto que você não pode conseguir um hipopótamo anão da Libéria. O nome disso na verdade é ser de terceiro mundo.”
Resta ao fim, um mundo invertido, ás avessas, que perdeu as referências compartilhadas pelo consenso, ainda que construído por uma lógica clara e objetiva. “A vantagem da beira da extinção é que ainda não é a extinção” (p. 52), diz Tochtli em certo momento. Com frases equilibradas como essa, Villalobos nos ensina o difícil, mas necessário exercício de concordar com o absurdo.


VILLALOBOS, Juan Pablo. Festa no covil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz




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