domingo, 19 de agosto de 2012

A fantasia não é um acidente em Diomedes, de Lourenço Mutarelli




            Ler "A trilogia do acidente”, saga vivenciada pelo detetive Diomedes e criada pelo mestre dos quadrinhos nacionais, Lourenço Mutarelli, é uma experiência enigmática. O personagem em busca de desvendar um enigma acaba descobrindo a fugacidade de tudo, até mesmo das identidades, como nas melhores histórias de detetive. Por isso, são muitas as cenas que tematizam a problematização do eu, como aquela em que Judite, mulher do detetive tenta limpar a própria imagem de uma colher (p. 82). Ou o momento em que, ao errar tudo que deduzira sobre seu cliente, Diomedes o assiste revelando certas particularidades cruéis da sua própria existência, o que inverte os papéis tradicionais. Contudo, o trecho ainda mais intrigante revela-se só na última parte da trilogia, quando o detetive vai até o festival de quadrinhos em Amadora, Portugal, e transita pelos grandes heróis da mídia que o celebraram.
Se o exercício trata-se de uma grande dedicatória de Lourenço a todos os mestres e personagens que admira, o trecho também serve para mostrar o abismo entre seu (anti?)-herói e seus pares mais célebres. O espírito aventuresco de Hergé? Sim, mas com tiroteios e baixo calão. O espírito cômico de Aragonês? Sim, mas com Schopenhauer e Sartre. O espírito heróico de Stan Lee? Talvez, talvez. Diomedes está de perfil, os vingadores estão de frente e parecem que o atacam, mas só o detetive brasileiro se move. Este é o seu mundo. O ápice ocorre quando o herói, para melhor transitar pelo festival, se traveste de Pikachu, pondo o patético e o paródico em pé de igualdade e podendo, enfim, habitar o universo do qual proveio com mais naturalidade. Além disso, aqui a criatura encontra Zigmundo Muzzarela, o alter ego do criador, num esforço metalinguístico que denuncia os inúmeros níveis pelos quais estamos transitando.
Mas existem outros  conflitos vivenciados pelo detetive e não menos brilhantes são as estratégias boladas por Mutarelli para representá-las. Sua história está repleta de seres deslocados e são várias as soluções estéticas que imprimem na arte seqüencial esta sensação, como o doutor Gouveia, cuja postura impostada e o linguajar impecável não pertencem ao ambiente de Diomedes e, por causa disso, é angulado em quadros que lhe abordam de perfil ou de costas, em poses desengonçadas. Além disso, as palavras de Diomedes, por exemplo, saem do quadro em determinado momento (p. 62), demonstrando os problemas do herói em ser compreendido, além de sinalizar para aquilo que nos escapa e que só pode ser medido se lemos além do que está no quadro.
 E que dizer do pobre palhaço Chupetin? Mesmo falando de fenômenos sérios e complexos da existência, não consegue impedir seus ouvintes de gargalharem enquanto discursa (p. 34-35), num conflito entre sua aparência e aquilo que ele realmente é. Significativo, se notarmos que descobrir o que as aparências escondem será a missão de Diomedes até o fim de sua saga. Em certas cenas, enormes balões comprimem os personagens (p. 97), revelando a força do dito e dos atos de fala, que podem abarcar tudo e a todos, tornando o mundo mais perigoso. E que dizer da tocante cena final do capítulo “O grande circo” em que vemos Diomedes se declarar para a esposa Judite - que o trai – para depois contemplarmos uma página inteira em que, atrás do herói, está o grande circo e tudo aquilo que ele parece não perceber, ou seja, as múltiplas possibilidades de sua jornada (basta notar que alguns dos elementos são elencados isolados nos quadros anteriores).
Ler “A trilogia do acidente” pelo olhar da identidade, das aparências e das essências, é tentar entrar no cerne de sua questão. A busca do mágico Enigmo é em certa medida a procura da fantasia, como Diomedes, lúcido, revela em certo momento: “Eu achava que a magia era a lembrança ou o esquecimento. Eu pensava que a magia fosse a soma disso tudo.” (p. 399); e completa: “Para mim, no meu mundo a magia é como esse filósofo falou... Ela está sempre em outro lugar” (p. 401). O pobre Diomedes não percebe que seu percurso é muito mais mágico e encantador do que imagina, e que descobrir a fugacidade de tudo é justamente uma das justificativas de admitir também o que é etéreo. Como nas melhores histórias de detetive... Talvez como nas melhores histórias de qualquer tipo.


 MUTARELLI, Lourenço. Diomedes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz



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