sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pataquada: Um momento estático, indeciso

Quem folheia Alguma poesia, de Drummond, corre o sério risco de ler isso:

Cota zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?


Pior, corre o risco mais grave de fingir que não leu. São apenas oito palavras num livro tão cheio de clássicos. Não falarei aqui do que já foi dito. Da relação do texto com o futurismo de Marinetti, que a essa altura já havia misturado Walt Whitman com Mallarmé e Stirner e tinha “Lês vieux marins” recitado por Sarah Bernhardt. Pelo contrário, quero propor uma alternativa mestiça. Dos três ingredientes básicos articulados pelo fundador do futurismo italiano – maquinismo, anarquia e verso livre -, “Cota zero” problematiza o último, e, a partir deste, todos os demais.
O primeiro verso contém uma única sílaba poética, que a partir da tônica aberta e da articulação fônica de duas oclusivas (“t” e “p”), simula não só a freada brusca do carro, mas também a suspensão manifesta do ritmo. O automotismo (presente também no radical “auto”, a seguir), desnaturaliza a leitura. Porém, faz isso através de um recurso extremamente naturalista: a semelhança entre a mecânica do signo (som) e seu significado.
Se atentarmos para a leitura dos dois versos seguintes, temos o oposto, isto é, a ênfase na metrificação, com intuito de criar um padrão natural. Temos duas redondilhas menores (versos de cinco sílabas) acentuadas na 2ª e na 5ª sílaba. Pois, se o último verso pode ser lido como um hexassílabo (ou – foi – o – au- to – mó), a leitura fluída naturalmente junta “o-au”, numa sílaba só. Podemos desta maneira, obter duas redondilhas. Assim, a musicalidade está presente, mas deve ser conquistada à força. Depois do primeiro verso, tão desfamiliarizador, por qual métrica optar? Drummond não nos dá escolha.
Não se pode ignorar que o ritmo estancado do primeiro verso parece querer retomar uma continuidade padronizada. Estamos, por isso, diante de uma poética. A dubitação expressa na conjunção disjuntiva “ou” é a responsável por coordenar, não só sintática como semanticamente, os dois lados da intranquila moeda vanguardista. Seremos orgânicos ou artificiais? Carregaremos o estandarte da técnica ou do homem? Enunciaremos uma ruptura ou comunicaremos uma convenção?
Drummond oscila entre as duas possibilidades e sua obra é o corolário de uma tentativa de síntese. No limite da vanguarda, o eu-lírico sai no zero a zero. Cota zero. A única certeza, expressa na única frase afirmativa a que o poema se permite, é a da estática. Um momento de reflexão, de indecisão entre dois caminhos. Muito melhor que no radicalismo de Marinetti, há aqui o automóvel, mas também um horizonte limpo para a Vitória de Samotrácia.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro. BestBolso, 2009.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

2 comentários:

  1. oi daniel! muito interessante tua leitura.mas creio que marinetti é pouco para te servir como "parâmetro"; neste momento, drummond ainda era iniciante mas já apontava o que viria quando se libertou da fase eufórica. vê tb o poema que fala do poeta municipal, estadual e federal (não lembro o título) e encontrarás algo surpreendente entre os poemas de Alguma poesia... beijo e parabéns pelo blog!

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    1. Olá, professora. Que felicidade vê-la por aqui. Valeu pelas sugestões.

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