A publicação
de Toda poesia, de Paulo Leminski, pela Companhia das Letras permite lançar um
olhar atualizado para uma das últimas grandes obras poéticas da literatura
brasileira até agora. O poeta curitibano marcou sua geração com a busca de uma
poesia solta e rigorosa, despretensiosa e erudita, binômios que marcam o autor
e constroem sua persona feita de pares
antitéticos, algo que Leyla Perrone-Moisés nota num dos ensaios que acompanham
a nova obra, ao abordar o autor pelo viés transcultural, o “samurai malandro”.
Apesar da
instabilidade de seu signo poético, Leminski, nos textos teóricos que escreveu,
permitiu entrever um projeto autoral bem pensado, explícito em ensaios como “Teses,
tesões”. Aqui, o autor afirma que, depois de Drummond e o seu exercício
metatextual de pensar a lírica no interior do próprio poema, houve uma
problematização do signo poético cuja principal consequência foi a
descontextualização da poesia que passou a não ter mais um lugar fixo nem uma
voz estável. Apesar das possíveis críticas que esta leitura pode receber (a
importância negligenciada de Bandeira, por exemplo), o decisivo em sua
constatação é a percepção de certa ausência de limites para o uso do verbo
lírico. Liberdade que oscilará durante toda a carreira do poeta entre a
comunicação e a invenção, o que o obriga a, na linha de Drummond, também
repensar de dentro o conceito de poesia.
Este pode ser
considerado pelo espanto diante das possibilidades da língua, o que mantém o
poeta em um tipo eterno de infância (“eu quero ver ser poeta com 60 anos” – diz
no documentário Ervilha da fantasia),
em que tudo deve ainda ser conhecido:
“poema na página
mordida de criança
na fruta madura”(p. 83)
A poesia pode também ser
conquistada pela espontaneidade, quase-sem-querer, o que sinaliza para sua
informalidade, ou seja, para sua capacidade de estar em todos os lugares e
poder ser conquistada por qualquer um:
“inverno
primavera
poeta é
quem se considera” (p. 108)
Da mesma forma, a expressão coloquial,
a fala de rua e o conhecimento popular são instâncias saudáveis do gênero
lírico, principalmente, devido à sua imprevisibilidade e sabedoria marginal:
“ a máquina em nós
que gera provérbios
é a mesma que
faz poemas” (p. 261)
Mas, o poema também pode ser, essencialmente, o nada, o
incaptável, o inenarrável, o intraduzível, em raras manifestações de assombro
perante a volubilidade da obra lírica:
“ Aqui jaz um
grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio,
acredito,
são suas obras completas.” (p. 289)
Por fim, e num caminho menos
sugerido e menos explorado pelos intérpretes de sua obra, há uma preocupação
histórica, de responsabilidade com o gênero e sua memória, o que faz o poeta
repensar internamente o valor do que escreve:
Poesia: 1970
Tudo o que eu
faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o
máximo.
Mal rabisco,
não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico
(p. 230)
A geração de Leminski, ele mesmo
o sabia e deixou por escrito, é uma síntese entre a vanguarda e poesia social
da década de 60, mesclando o experimentalismo e rigor intelectual de uma
(principalmente dos concretos) com a necessidade comunicativa da outra (dos
marginais, em geral). Tanto a radicalização experimental quanto a despretensão
desleixada tiveram seu papel, ainda que não devam ser perseguidas de forma
gratuita, e Leminski o sabe. Talvez por isso, lendo sua obra completa seja
possível perceber um work in progress
sob a dinâmica tentativa-erro, rendendo obras geniais:
“nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista
queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
- cala a boca
e pro relógio
- abaixo os ponteiros” (p. 109)
E outras infames:
“Pense depressa.
O que veio?
Quem veio?
Bonito ou feio?
Ninguém” (p. 18)
O primeiro verso “Pense depressa”
já é tributário da ideia do pensar rápido, do consumo desinteressado e
apressado dos produtos. Influenciado pela publicidade e pela lógica de mercado,
tal tiro sai pela culatra em certas passagens, sendo um dos maiores problemas
da obra do curitibano (sacrifícios necessários na busca do verso certo):
“O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda”
Contudo, a mistura de senso
comum, fruto do esperto uso das convenções fáceis, com o achado difícil, fruto
esforçado da labuta, integra uma poética simpática, justamente porque cativa pela
amplitude dialógica. Trechos superficiais típicos da frase feita abundam, o
jargão popular também, disfarçados pelo gesto “estranhador”, facinho de
confundir com o poético, e por que não? Daí um comportamento marginal de muitos
eu - líricos, esforçados em misturar ambientes distintos, principalmente
levando o poeta à rua:
“Ainda vão me matar numa rua.
quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.”(p. 24)
Neste exemplo, o advérbio “principalmente”,
que não tem nenhum sentido se isolado, é, justamente, destacado em um verso só
seu, estratégia que simula, na sintaxe, a oscilação de valores elaborada pelo
ideal do poema. Em outro momento similar, temos o mesmo sentido marginal, dessa
vez em um haikai:
“ de colchão em
colchão
chego à conclusão
meu lar é no
chão” (p. 318)
O lugar excêntrico, fora do eixo,
é valorizado e ambicionado, desejo pungente de vencer distraído e que faz o
poeta falar de si, mesmo quando se refere às pedras, no excelente “Litogravura”:
Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e
cinquenta.
Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta
Felizes as pedras
da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua
esfria
e o sol esquenta. (p. 201)
Tal atitude vem acompanhada da
fuga da lógica ocidental, vitimando, explicitamente, um de seus fundadores:
“CURVA PSICODÉLICA
a mente salta dos trilhos
LÓGICA ARISTOTÉLICA
não legarei a meus filhos.” (p. 89)
Ou atacando a ratio, enfim, ao lado do empirismo, ao
pregar, em muitas passagens, ideias como:
“ os sentidos
sejam a crítica
da razão” (p.
203);
“essa ideia
ninguém me tira
matéria é mentira” (p. 322)
O projeto
editorial, consciente disso, constrói um livro cujas divisões entre os poemas são
feitas por manchas displicentes. Borrões que sinalizam para a materialidade
descuidada da escrita. Sinais da “tentativa e erro”, mencionadas anteriormente,
e, certamente, uma dinâmica das mais adequada para pensar o contínuo da obra de
Paulo Leminski. Esta aparente gratuidade aparece com força na revisão de certos
componentes da lírica, dentre os quais se destaca a normalização do enjambement. Geralmente tratado com
cuidado, o recurso de finalizar o verso, sem que este esteja completo
sintaticamente se torna a norma e não o desvio em muitos poemas de Leminski,
algo que sua geração popularizou para desespero de críticos como José Guilherme
Merquior que os censurava por isso. O resultado é a ruptura completa com a
sintaxe cotidiana, permitindo que o verso seja aquilo que sempre lhe definiu
como tal, ou seja, uma antífrase, um “inutensílio” semântico, entregue a uma
lógica desconhecida.
A sonoridade
é outro caso à parte da poética de Leminski. Uma de suas vias deságua na
relação que o poeta estabeleceu com a canção, sendo os ritmos, aliterações e
assonâncias produtores da musicalidade dos versos. Contudo, este caminho já
explorado amplamente pela futura crítica não me interessa. Outra via de análise
provém do conceito de hipograma, criado por Saussure e transposto para a
interpretação lírica fundamentalmente por Michael Rifatterre. Nesse sentido é
possível ver como os compostos hipogramáticos do cotidiano (frases feitas,
chistes, clichês, etc) são reelaborados também por associações e redundâncias
sonoras, em um esforço de permitir que a própria materialidade do signo seja
responsável por sua semântica. O uso fônico-musical problematiza o hipograma ao
elaborar outros semas sob aqueles cristalizados na linguagem, produzindo um
novo sistema semiótico (ou tentando) a cada texto, cuja leitura revela um idioleto particular.
Antes de
terminarmos é possível notar que, mesmo apostando na displicência motivada e
certa indisciplina, a obra de Leminski não foge à catalogação de temas e
imagens recorrentes. Fico com uma provavelmente ainda não explorada e que
permite dizer muito de sua poética: a imagem da estrela. Esta é reveladora de
uma necessidade de unir o mundo terreno com outro que lhe transcende,
metaforizado pela estrela:
“a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão” (p. 115);
“noite
a vespa pica
a
estrela vésper” (p. 115);
“peguei as cinco
estrelas
do céu uma a uma
elas estrelas
não vieram
mas na minha mão
todas elas
ainda me perfuma” (p. 217);
“hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de
laranjeira” (p. 114);
“na cozinha
debaixo da lâmpada
minha mãe escolhia
feijão e arroz
andrômeda para cá
altair para lá
sirius para cá
estrela dalva para lá (p. 255);
esquentar numa fogueira
o frio que sinto
ao contemplar
estrelas? (p. 120);
“a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa” (p. 91)
Nesse imaginário semi-lúdico, brincar com o céu é homólogo a
brincar com palavras:
“as coisas estão pretas
uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras” (p. 120)
“ Escrevo porque
amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram
letras no papel,
quando o poema me anoitece.” (p. 218)
“lá fora no alto
o céu fazia
todas as estrelas
que podia”
Todas estas citações demonstram o
andamento consciente de um imaginário razoavelmente organizado e repleto de
correlatos objetivos, representativos daquela amplitude de limites, expressa no
início deste artigo (estelares, no caso), que seu verbo procura. Além disso,
esta redundância importa na comunicação estabelecida entre o poeta e seu
público. Leminski é, portanto, um comunicador, esforçado em tirar o máximo de
sua língua, mas também um renovador, espremido pela necessidade de “salvar” o
idioma:
“está nas últimas
a última flor do Lácio” (p. 381)
Por isso, uma poesia orgasmática,
esportiva, marcial, para usar metáforas do próprio autor em entrevistas e
escritos. Por isso, os erros, as fórmulas repetidas, como que indecisas em revelar se o problema é do discurso ou do homem por trás dele. Se estamos
diante de um erro ou se pairamos diante de mera tentativa. Contudo, depois de
ler Toda poesia, de Leminski, ou
qualquer poeta com uma rítmica tão particular, a verdade é que o próprio mundo
nos estranha e nós a ele. Tudo que ouvimos, queremos pôr no metro do poeta
lido. O laconismo sem secura, no ritmo medido, todavia amplo de seus versos
torna-se a norma. Deparamo-nos buscando associações fônicas a todo momento e o
resultado, geralmente decepcionante nos devolve um mundo prosaico, afônico,
cacofônico, no mais!
Leminski, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia as
Letras, 2013.
Autor: Daniel Baz
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