terça-feira, 7 de maio de 2013

Morte e vida em Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr



Guadalupe conta uma história de morte... e de vida.
A morte repercute silenciosa, mas plena, nas duas únicas páginas duplas do álbum. Aliás, não se trata de qualquer tipo de morte, mas a tipicamente mexicana, envolvendo rituais indígenas, mística popular e civilizações ancestrais. Entretanto, é a vida que aos poucos ganha mais espaço durante a leitura.
A Guadalupe que dá nome ao álbum foi criada desde criança pelo tio, o travesti-grande-diva-porra-louca Minerva. No início da história a encontramos no dia do seu aniversário de 30 anos, incomodada com o fato de ainda trabalhar no sebo do tal tio. Tudo muda quando sua avozinha Elvira - cujo hábito de percorrer a cidade em alta velocidade sobre uma scooter nos impressiona na primeira cena da obra – morre ao chocar-se com um tacomóvel. A vivacidade da anciã é uma das imagens mais fortes equacionando a paridade vida/morte que compõe todo o álbum. Acontece que a simpática anciã havia feito sua neta prometer que a enterraria em sua terra natal Oaxaca, com banda de música e tudo. Guadalupe e Minerva adaptam o furgão do sebo aos moldes de um carro fúnebre e partem. Esta adaptação automobilística também diz muito da transformação que a protagonista irá vivenciar durante a viagem, além de subverter a solenidade da morte com um humor que permeará todo o álbum, formando par com a imagem da vivaz morte da anciã.
Afinal, a história poderia receber a tônica angustiante e pesada de um As i lay dying, de William Faulkner, mas é conduzida pelo viés do humor, e da magia, beirando o surreal em certos trechos, produzindo uma Road trip mais aparentada com filmes como Família Rodante, de Pablo Trapero, ou Pequena miss sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris. No caminho, até mesmo um grande vilão é introduzido na figura da divindade pré-colombiana Xyzótlan que manda um arauto (infelizmente desinteressante) atrás da alma de Elvira e teme a perda de fiéis para as novas religiões. Para combater a ameaça, cogumelos alucinógenos e a invocação do Village People se juntam ao complexo insólito que forma a obra.
Apesar das inúmeras qualidades, das quais já falarei, o principal defeito de Guadalupe é não aproveitar suficientemente o universo e, mais ainda, os personagens criados. Ao fim do volume, parece que ambos foram pouco desenvolvidos, o que, de certa forma é um elogio para a empatia produzida pelo universo ficcional. Além disso, em certos trechos o humor excessivo e nonsense é responsável por certas saídas superficiais (como boa parte das resoluções dos problemas enfrentados). Contudo, todo feito em preto e branco, o álbum apresenta algumas escolhas compositivas de dois artistas extremamente competentes.
Começando pelo traço de Odyr que, se não está tão virtuoso quanto no excelente Copacabana, explora a linhagem pictórica inaugurada com o barroco na contramão de um estilo linear e sóbrio. Em várias cenas de Guadalupe é impossível fugir da dinâmica das ações que se sucedem sem um eixo orientador em que o olho, após observar uma imagem se move contiguamente para as demais. A própria cena da motoca convergindo para o tacomóvel é exemplar disso. Os contornos dos personagens são instáveis, ora se perdendo no fundo, principalmente quando ele é carregado em tintas e em cenas de tensão (um exemplo é a cena do arauto e da divindade), ora misturando os planos dos desenhos (a cena do camarim enquanto seu tio se arruma é exemplar disso). O preenchimento das figuras é mais valorizado e as linhas oscilantes que definem sua silhueta enfatizam com precisão o insólito de um mundo prestes a se dissolver em dimensões espirituais, místicas e fantásticas (o que também combina com a ideia de Road trip em que tudo é móvel e a revelação de universos novos é uma promessa).
A expressividade dos personagens também é elaborada a partir de algumas boas construções iconográficas dos balões e nos tipos de letra utilizados. Isso se soma ao uso hiperbólico das metáforas visuais em que as aparências do mundo são a expressão do sentimento humano envolvido. Seja na cena em que o rabecão improvisado pifa, formando uma silhueta branca em um quadro totalmente negro (e a imagem de uma caveirinha levita), seja na iconografia da mulher maravilha que adorna a travesti no combate final, seja no simbolismo do espelho que encerra o álbum. No desbunde que é a solução da jornada, tudo isso só se torna mais exagerado ainda, acarretando inclusive na perda da carga emocional do álbum pela ênfase no humor escachado.
Apesar de alguns deslizes, a obra mantém a boa qualidade de um corajoso projeto editorial, no qual a Companhia das Letras une a voz de um escritor à de um desenhista. O resultado é esta história transformadora e incomum. Guadalupe tira sua personagem homônima do cotidiano prosaico em que vivia e revela para ela um turbilhão de possibilidades mais que surreais. O motivo fúnebre desencadeador de todo o périplo rima com a sensação final de que a protagonista não será mais a mesma, algo morreu a partir de sua terceira década.
Guadalupe conta uma história de vida... e de morte.





 
 FREITAS, Angélica e ODYR. Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.



Autor: Daniel Baz

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