sábado, 4 de agosto de 2012

A sociedade nada secreta de Enrique Vila-Matas



Vila-Matas é um obsessivo. Um monomaníaco. Nutre uma devoção doentia pelos duplos, pelas estruturas em abismo, pelas coincidências, pelas sociedades secretas e, é claro, pelo seu habitat mais natural – a ficção. Quem conhece sua obra, sabe que pode esperar um universo infinito de espelhamentos, de citações, o que o destaca no contexto contemporâneo da hipertextualidade. Afinal, foi ele quem idealizou o “mal de Montano”, que caracteriza alguém obcecado por livros, foi ele quem criou os shandys, obcecados por literatura portátil, é de sua imaginação que surgiram os “bartlebys” modernos, sescritores que simplesmente preferem não fazer seu trabalho. Contudo, mais do que unicamente se preocupar com a demonstração da multiplicidade dos caminhos em tempos atuais, o escritor espanhol parece obcecado com uma constatação muito mais perturbadora, todos eles já foram percorridos.
Apesar disso, no seu novo romance Ar de Dylan, Vila-Matas explora, mesclando inteligência e pedantismo (talvez consciente/intencional), novos prismas de seus velhos problemas. O romance começa quando o narrador, em primeira pessoa, recebe um convite para participar de uma conferência cujo tema é o fracasso. Sim, mais uma vez a narrativa tematizará o insucesso, como é comum em outras obras do escritor. Na tal conferência, o narrador conhece Vilnius Lancastre, filho do escritor Juan Lancastre. O jovem, que possui uma intrigante aparência similar a de Bob Dylan, é obcecado pelo fracasso e, após bater a cabeça, herda a memória do pai, que passa a assombrá-lo como Laertes o fez com Hamlet. O restante do livro irá se desenrolar a partir da relação entre o narrador, Vilnius, Débora, amante do falecido pai de Vilnius, e sua mãe malévola, Laura Verás.
A narração em primeira pessoa vem encaixada com outros trechos que dominam a narrativa e são narrados também na primeira pessoa, mas de Vilnius. Uma escolha que separa o texto em camadas, combinando um repertório repleto de níveis diegéticos. Neste aspecto, o intertexto continua parte fundamental do sentido das obras de Vila-Matas. As citações explícitas e implícitas servem para sinalizar para fora das fronteiras da fábula, induzindo o leitor em discrepantes zonas textuais que aliam Shakespeare, Kafka, o cinema dos irmãos Cohen, Knut Hamsun, e, claro, Bob Dylan.
O aspecto intertextual da composição dos textos de Vila-Matas, ao lado do encaixe narrativo, é uma de suas tantas formas de desconvencionalizar os limites da ficção, ao enfatizar a artificialidade dos contornos dos muitos textos que se interpenetram, pondo em relevo sua característica montável. Principalmente pelo fato de que, tanto a vida das personagens, quanto a ficção (neste texto, geralmente na forma do teatro, que intitula três dos quatro capítulos nomeados do livro) são submetidas à mesma entonação narrativa. O drama de Vilnius, por exemplo, no seu conflito com o pai, é a microtrama que introduz o problema da filiação, esboçada também nas relações intertextuais. Da mesma forma, Bob Dylan, mais do que ser o homem de múltiplas faces, símbolo dos tempos atuais, é também um exemplo de alguém que aprendeu a romper com suas influências, no famoso episódio de sua desfiliação com o folk.
Dessa forma, sua vida permite que se qualifique uma ficção de múltiplas personalidades (Ar de Dylan mistura mistério, melodrama, ensaio, aventura), além de esboçar o conflito da “angústia da influência”, como tratada por Harold Bloom. Este sendo um dos tópicos mais recorrentes na obra do escritor espanhol. A história da literatura para Vila-Matas é um combate entre filhos desgarrados tentando livrar-se das influências dos pais, que lhes assombram com sua memória e experiência. As relações não respeitam a cronologia da história literária. Como no sistema descrito por TS Elliot, em “Tradição e talento individual”, a literatura é um grande complexo sincrônico em que Bob Dylan pode influenciar Kafka (p. 303), por exemplo.
Além das referências à história literária, Vila-Matas notabilizou-se por mesclar literatura e ensaística em seus textos, o que pode ser visto principalmente em Bartleby e Companhia e em História abreviada da literatura portátil.  Em Ar de Dylan, isto também está presente, ainda que de forma mais atenuada. Entretanto, digna de certo relevo é a presença de espaços acadêmicos na trama e sua potencialidade de tornarem-se palco de histórias que mereçam ser narradas. Ao desenrolar sua trama em conferências, palestras e outros espaços habitados pelos críticos literários, Vila-Matas consegue garantir a verossimilhança do tom ensaístico de certas passagens.
Por fim, é preciso mencionar a criação de sociedades secretas por parte dos personagens do romance, outra obsessão de Vila-Matas, que também retorna com força aqui. Neste caso, os protagonistas fundam a conjura dos "infraleves", grupo que tem o objetivo de produzir uma ideia por dia, mas esquecê-la logo após tê-la comunicado. A ideia de grupos com certas afinidades que se deslocam da totalidade social para oferecer uma imagem dela, vem complementar a imagem do texto parasitário que vive de si. O mundo é um conjunto de complexos textuais e humanos que se interpenetram e que convivem com a impossibilidade da literatura e da realidade total. Num cenário desta natureza, o autor confia nos pequenos núcleos, fragmentos da sociedade, que, unidos por crenças que lhes unificam, formam pequenas totalidades. Estes grupos dedicam suas vidas aos textos. Esta parece ser uma imagem símbolo desta sociedade nada secreta que Vila-Matas inventou, composta por aqueles que não podem optar entre vida e literatura, pois não saberiam dizer onde termina uma e começa a outra.

VILA-MATAS, Enrique. Ar de Dylan. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Autor: Daniel Baz

2 comentários:

  1. Deu vontade de ler.

    Já vi que a lista de livros pra depois do doutorado vai ficar imensa.

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    1. Estás mais otimista do que eu. Acreditas em vida após o doutorado :P

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