domingo, 24 de junho de 2012

Um livro sem guia, sem saída


A trama básica é assim...é...é...são...é a história de dois paralelos (rindo), que obviamente nunca se encontram...é... um cara que viaja a um país distante, tem um problema físico grave, ele precisa de um transplante de fígado, ele compra um fígado, então ele faz o o chamado turismo de transplante, ele viaja para um lugar que é outro lado do mundo pra fazer essa operação... é... enquanto que em outro plano, em outro tempo da história tem um cara que tá perdendo alguns órgãos e ao mesmo tempo ele está vomitando chips eletrônicos, e ele não sabe da onde vem esses chips e muito menos pra onde vão os seus órgãos, ele simplesmente não sabe, ele vive sedado e tem uma confusão temporal ali, ele não entende o que é passado e o que é presente, mas uma das sugestões, e há diversas possíveis na história, é a de que esse cara era um preso condenado a prisão perpétua, que negociou seus órgãos em troca da liberdade. Então...porém... há um... há diversas confusões ali que ficam ao encargo do leitor interpretar, né? Você não sabe se o que acontece nas imagens realmente aconteceu, se é lembrança dele, ou se é fruto da imaginação de um cara que ficou a vida toda preso e...e simplesmente sonhou em ter uma vida e não teve.*

O livro conta a história de dois personagens: uma cara que tá perdendo seus órgãos e não sabe bem porquê; e outro que faz uma longa viagem pro outro lado do mundo pra receber um transplante de fígado. E esse outro que tá perdendo os órgãos ele é, ou pensa que foi, ou desejaria ter sido, isso não fica muito claro, um desenhista de história em quadrinhos, um cartunista, o criador, um criador de grande sucesso, do Homem-escada, que é um personagem...que é um...é um...é um super-herói meio patético porque né, afinal de contas ele só tem um superpoder que é justamente auxiliar as pessoas a chegar a um outro lugar.**


Acima, o autor Joca Reiners Terron tentando definir a mistura de história em quadrinhos, literatura, e órgãos perdidos que constituem seu mais novo trabalho, Guia de ruas sem saída. Como fica explícito, qualquer tentativa de compreender inteiramente sua história esbarra em um exercício superficial quase inútil, visto que são muitas as possibilidades de associações entre os estratos do enredo. Não é à toa que Terron gagueja e titubeia logo após tentar definir a “trama básica” de seu livro, assim como não pode passar em branco que o magnífico “Homem-escada” esteja ausente na primeira sinopse.
O texto é construído com a parceria do desenhista André Ducci, cujas imagens complementam a trama da ficção. Logo em seu início, somos levados ao tom imaginativo e autorreferente dos contos de fadas a partir do “Era uma vez”, usado com precisa ironia. A prosa tateia as próprias possibilidades assumindo seu hermetismo:

“Era uma vez.
E fim.
Queria começar a história dessa maneira. Era uma vez. E fim. Mas não. Existem outras coisas entre esses dois extremos.
Por exemplo: mãos.” (7)

Entre o começo e o fim, o pesadelo do aleatório e do acidental ronda a configuração de uma estética híbrida. Ambivalência que influencia a perda das identidades das personagens, visto que elas sucumbem até mesmo à confusão das pessoas do discurso:

“Vasculho os bolsos. Uma chave. Abre a porta” (p. 11)

Ou quando as próprias palavras perdem a identidade, ao misturarem-se umas com as outras:

“Que catso de gelo é esse que me queima a pele? Que porra de água gelada é essa? Que puta-que-pariu de lugar branco é este? Meus pensamentos tão embaralhando, tão pensalhando, tão embamento. Que catlo de gezo é esmi pe queima ssenha quele? Gue ágorra de pgua quelassa é eda? Seum mentolhando, não pensaemba. Pue luta-que-pfiu de pusanco garepo, catso, orraralho? Que puta-que´pariu de lugar branco é este, porra caralho? (p. 17)

O signo transracional é mais uma forma de enfatizar as áreas semânticas além do campo lexical conhecido. Assim, após a primeira sequência de imagens (que dura 54 páginas), somos surpreendidos com uma única frase solta no meio da página 76: “Acho que comecei a entender tudo”. Não sabemos qual o limite da memória das personagens. Não sabemos onde termina o “era uma vez” e começa o “foi mesmo assim”, pois o tema central de Guia de ruas sem saída envolve justamente a imprevisível abertura da forma. O romance aceita a história em quadrinhos como potência regeneradora, no sentido de que se renova enquanto gênero ao demonstrar que nada sabíamos a respeito de suas reais potencialidades. Na linha de outros brasileiros, como Ferréz, em Capão Pecado, ou estrangeiros como Sebald em Austerlitz, entre outros, as imagens revitalizam e estendem os limites da gramática romanesca, mesmo que descaracterize o repertório canônico que conhecíamos.
André Ducci mostra uma sensibilidade afinada com seu companheiro escritor. Com destaque para o uso de preto e branco que, em cenas como a do mendigo, por exemplo, e no tratamento dos olhos (inteiramente negros, ou brancos) ajudam a compor o interior dos seres. Além disso, o traço do desenhista enfatiza as formas geométricas, que são respeitadas dentro da anatomia das personagens e na composição dos quadros, como o brilho do mar composto por retângulos pretos e brancos, lembrando Picasso, e cenas como a do incêndio - além dos tons de cinza que não pude deixar de relacionar a Guernica, pois a ausência de cores aqui também contribui para isolar os valores da forma e a tragicidade do tema. Em muitos momentos, as sombras e formas permitem também certa dualidade entre o profundo e o plano, principalmente nas cenas da esposa sozinha no hospital.
Guia de ruas sem saída é um projeto ousado de ficção que permite mais uma vez admitirmos o quão insuficientes sempre serão as previsões do futuro da arte. Quando menos esperávamos ela nos desestabiliza mais uma vez e mostra que vive numa temporalidade em que a fruição não é ainda suficiente para capturar. Um livro sem guia nem saída? Talvez. Mas, com o mesmo super-poder de seu emblemático herói, pode nos permitir o acesso a outro lugar.


TERRON, Joca Reiners. Guia de ruas sem saída. São Paulo: Edith, 2011.

* Entrevista disponibilizada no endereço http://televisao.uol.com.br/videos/assistir.htm?video=metropolis--entrevista-com-o-escritor-joca-reiners-terron-04020D9B366EE0B92326
** Entrevista disponibilizada no endereço
http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-literatura/t/programa-completo/v/achei-que-o-livro-fosse-ser-tradicional-mas-virou-uma-montagem-diz-escritor/1933965/

 Daniel Baz dos Santos

2 comentários:

  1. Caros amigos do PF. Quero que vocês parem de ler coisas legais e quero que eu pare de ficar com vontade de ler. Tenho outras leituras para fazer e não posso dedicar um pouco do meu tempo pra fazer as leituras que vocês acham legais. Agradeço do fundo do meu coração.

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    1. Nos sensibiliza estar no fundo do teu coração. Portanto, continuaremos procurando coisas mais legais ainda, para irmos ainda mais fundo. :P

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