sábado, 31 de março de 2012

Um bobo, uma alma boa e uma inocência pisada

Existem personagens ingênuos na literatura. Mesmo na literatura moderna que aprendeu a assumir certa ironia na relação com seus conteúdos, ainda existem seres, cujo comportamento idiota, imbecil, estúpido, ignorante obrigam que nos envolvamos com seus problemas e torçamos por seu sucesso, ainda que não mereçam. Neste dia 01/04, o Pato fáustico apresenta três exemplos de protagonistas “bobos”, personagens cuja indefensável capacidade de serem enganadas estrutura os enredos das histórias.
Nenhuma das representações do ingênuo na literatura me comove mais que a feita por Isaac Bashevis Singer. Um dos grandes nomes da literatura ocidental e um dos maiores contistas do século XX, tendo morrido no segundo ano de sua última década. O polonês escreveu seus primeiros trabalhos em iídiche, que aos poucos foram traduzidos para o inglês, com sua ativa participação. Este é o caso do conto que nos interessa: Gimpel, o bobo. Exemplo máximo de conto de caráter, em que a personalidade escolhida para o herói determina todos os acontecimentos do enredo.
Gimpel é o bobo da cidade. Todos lhe enganam e se divertem com isso. Logo no início da história uma “brincadeira” o leva a se casar com Elka, mulher divorciada, viúva e fedorenta com quem o protagonista terá seis filhos em 20 anos. Ao final do conto, as muitas traições por parte da mulher culminam com a morte dela e um pedido de desculpas seguido da revelação de que nenhum de seus filhos era de Gimpel.
No texto de Singer, como nos demais aqui presentes, o caráter bobo da personagem, fácil de ser lograda, está associado à pureza de seus sentimentos. Como resume o trecho em que, ao aconselhar-se com o rabino, este lhe diz: “Está escrito, melhor ser bobo todos os seus dias que ser mau por uma hora. Você não é bobo. Eles são os bobos.” (18) No caso de Gimpel, o fato de este contar a própria história é necessário para esta conclusão. Logo no início, o personagem revela-se incrédulo com algumas brincadeiras, mas prefere não frustrar e irritar os escarnecedores. É também sua narração que permite que tenhamos acesso aos momentos em que Gimpel titubeia no limite da raiva e da vingança, incentivado por um espírito do mal, mas decide nada fazer.
Neste ponto, fica clara uma das grandes propriedades de Singer, a de desbravar as contradições de uma cultura tradicional judaica em contato com a modernidade ocidental. Assim, aqui também o personagem é dúbio, complexo, e temos acesso a uma complexidade que os demais personagens jamais terão. A primeira fase do texto põe a personalidade do herói em ambiguidade e atesta a diferença de nossa relação de leitor com Gimpel e da sua relação entre ele e sua comunidade: “Eu sou Grimpel, o bobo. Não acho que eu seja bobo.” (17). A negação da alcunha é uma negação da própria história, pois esta recebe o título que o titular renega. Duas narrativas existem em paralelo no conto. Uma pertence à doxa, à opinião do coletivo e que legitima toda a série de eventos artificiais que compõe o enredo. A outra narrativa é aquela que Gimpel não pode contar, a narrativa do eu.
Gimpel enquanto narrador estabelece uma ruptura entre o narrador arcaico e o narrador do capitalismo pós-industrial (como descrito por Walter Benjamin). Sua história deve ser diferente da experiência coletiva para se afirmar como narrativa autêntica. O cosmos da massa dissolve a emergência da experiência do narrador. No limite da ficção, que possibilita um espaço para o “eu” ser, e da ficção que envolve o que a sociedade legitima, uma deformação irrompe e já falaremos dela. Antes precisa ficar claro que o conflito do narrador é intradiegeticamente exposto quando Gimpel, ao fim do conto e longe de Frampton, sua terra, passa a contar as histórias, muitas delas inventadas, para as crianças do local. A institucionalização narrativa do sujeito é precisa, ainda que no fim de sua existência o que permite que o sujeito descubra que não há fato inverídico, mas tudo o que é contado é de alguma forma real.
A deformação a que me referi anteriormente envolve tudo isto e está relacionada com a teoria do conto ocidental. O gênero sempre se estabeleceu, nas suas bases mais essenciais, a partir de sua extensão. O conto é uma narrativa curta e por isso teve que explorar uma série de técnicas de efeito contido, das quais as mais recorrentes são as unidades (tempo, espaço, etc). O assunto de Gimpel, o bobo, pensado desta perspectiva é um anti-conto. O tempo é muito extenso e o espaço carece de unificação. A única esfera que lhe dá unidade é o caráter, ou seja, é a personalidade definida em poucas bases do protagonista que parece unificar a amplitude conteudística da experiência informada pelo conto. A história dilui uma experiência ampla na técnica da contensão e esta forma esquizofrênica (onde os significantes não possuem significados estáveis) é resultante da ambiguidade do caráter que guia a história. Ingênuo é quem lê.
Nosso segundo caso, transita na esfera do teatro e será analisado a partir da peça A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht. Esta mostra como a prostituta Chen Te – a história se passa na China – compra uma pequena tabacaria, com o dinheiro dado por três deuses que, ao vir à terra, encontram na figura da heroína a única alma boa do lugar, visto que somente ela lhes dá abrigo. Após a fortuna da mulher, toda a cidade passa a explorar sua bondade e sua posição elevada, o que faz com que ela se travista de homem, criando Chuí Ta, seu duplo, seu primo.
Como no exemplo acima, bondade, ingenuidade, inocência andam muito próximas e são o cerne de uma severa crítica às relações humanas no capitalismo. A peça é escrita dentro do grande projeto brechtiano do teatro épico, cuja questão central resume-se na tentativa de questionar e denunciar a ilusão da representação no palco teatral. Desconstruir o teatro demonstrando os mecanismos por trás de si é um meio para o projeto de expor as vísceras do mundo capitalista. Entender os artifícios da mimese dramática ensina o afastamento crítico ao público que, de alienado, passa a participar ativamente do produto artístico, pois sua posição é incorporada também às possibilidades de significação. Atitude revolucionária diante da passividade conservadora tradicionalmente exigida ao espectador teatral.
Entender a peça enquanto encenação, e compreender suas estratégias expressivas poderiam assim, introduzir o sujeito na história, pois este se relaciona com um mundo de arbitrariedades passível de transformação. Não há lado de lá do palco, tudo é cena e exige participação. Isso é feito, por exemplo, desnudando os componentes cênicos, deixando refletores à vista e todos os outros aparatos técnicos que produzem os efeitos pretendidos. O que estimula o espectador a reconhecer a origem das estratégias discursivas a que está submetido. Tornar-se, então, consciente da produção dos objetos.
A questão do épico é complementar. Aqui o adjetivo refere-se ao tratamento dos assuntos públicos (em contraposição do dramático, que se envolve de matéria privada).  Além disso, reforça o distanciamento já que o épico envolve sempre uma voz de fora que narra a história de alguém, ocorrida geralmente no passado. A emoção já está diluída em uma visão externa, o que favorece a instalação do ponto de vista crítico. Muitos são os momentos em que as personagens de Brecht narram à platéia o que lhes aconteceu. No caso de A alma boa de Setsuan, isso acontece em muitos momentos como a fala inicial de Wang, no prólogo, e o momento em que Chen Te conta o que lhe aconteceu após a visita dos deuses, no início do primeiro ato (69). O drama, por sua vez, dá-se em tempo presente, o que envolve de imediato a platéia e dificulta sua reflexão. Só abandonando estas estratégias pode-se entender as determinantes sociais das relações inter-humanas, que no teatro épico já não são mais o centro da intriga. Uma técnica complexa que envolve até mesmo a atuação dos atores, o que já foge de nosso enfoque.
Na peça de que tratamos tal mecanismo é evidenciado, por exemplo, quando o segundo Deus desmascara Wang o aguadeiro ao revelar que o copo usado pra medir a água que ele lhes serve tem fundo falso (62). Assim, um componente cênico (copo) é racionalizado internamente na cena, o que conscientiza a platéia para os demais itens usados.  O que é enfatizado quando Wang, dirigindo-se a platéia, questiona se os deuses não teriam notado o truque. (65) O copo também funciona como alegoria para as relações humanas, que carecem de consistência. Outras cenas essenciais são aquelas em que Chen passeia com o filho (144-145), que ainda não nasceu, e pede à platéia que dêem abrigo à criança; quando narra aos ouvintes boa parte da cena vivida na fábrica e no final, como falaremos a seguir.
Chen Te usa o disfarce de Chuí Ta para fazer tudo aquilo que sua personalidade não conseguiria, mas que é essencial para sobreviver no modo de vida capitalista. Usa esta lógica para controlar Sun, personagem por quem se apaixona, e desenvolve a tabacaria explorando os demais. Mas é o quiproquó, a mudança de sexo e  de personalidade que apesar de remeter a Shakespeare, revela uma nova forma de encarar o humano. Trata-se do processo de desmontagem e montagem do indivíduo, que já em Homem é homem pode ser percebida em sua forma acabada.  Além de se contrapor ao drama tradicional, que investia numa conduta estática de caráter do herói, já que a “falha” da bondade de Chen Te é substituída e depois se reveza com sua capacidade de ser fria e dura, o artifício explora a conduta na sua função e na sua integridade. Neste último caso, como em Gimpel, ela nunca pode ser legitimada a não ser dentro do próprio eu.
Dentro desta fase de Brecht o enredo até que se resolve de forma não muito radical, mas a última cena é mais um manifesto do teatro épico já que deixa ao público a tarefa de resolver o problema:

“Para este horrível impasse, a solução no momento
Talvez fosse vocês mesmos darem trato ao pensamento
Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente
Ajudar uma alma boa a acabar decentemente...
Prezado público, vamos: busque sem esmorecer!
Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver! (185)

Uma Clarice isolada, afastada da família e lutando contra o câncer concebe um dos textos mais emblemáticos do desenvolvimento romanesco da literatura brasileira, além de essencial pra que entendamos um terceiro tipo de personagem ingênua e boa da literatura. Falamos de Macabéa, protagonista de A hora da estrela. Clarice já declarou em entrevista à TV cultura de 1977 que a história de sua miserável protagonista seria a de uma “inocência pisada”. Vejamos como o texto pisa nesta inocência.
A história se estrutura em duas camadas. A primeira, delas funciona em metalepse com a segunda a emoldurando e conferindo-lhe sentido. Espaço discursivo em que o narrador Rodrigo S.M. organiza uma segunda história, esta sim de Macabéa, cujo percurso culminará na “hora da estrela” do título. Neste engenho narrativo, a primeira pessoa (Rodrigo) e a terceira pessoa (Macabéa) são simultaneamente produzidas em espaços que nunca se cruzam. Por trás do narrador “que na verdade é Clarice Lispector”, como diz a dedicatória, está a figura autoral e isso é fundamental para que entendamos a construção da desgraçada nordestina.
Macabéa é uma das tantas personagens femininas que desde seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, terão suas identidades investigadas e problematizadas pela narração. Acontece que aqui a identidade ficcional esta diluída nas muitas camadas textuais que funcionam de forma encaixada. Este encaixe sinaliza para o caráter montado do texto, e funciona realçando seus artifícios técnicos, o que é essencial para a percepção do aspecto “alegórico” (Eduardo Portella) e paródico da nordestina. Esta se situa na contramão de toda a obra da escritora, guardando semelhanças com a vertente neo-realista do romance brasileiro que, com força na década de 30, explorou o universo social que contextualiza Macabéa. Mas aqui este universo aparece para ser desconstruído.
Dois tempos se contrapõem, o psicológico de uma consciência criadora, Rodrigo, e o cronológico de um objeto inconsciente do enredo, Macabéa. A ingenuidade desta última é  homóloga ao enredo unilateral e insuficiente que a emoldura. O esforço de Clarice está em propor o fracasso legítimo da forma que, ao pesquisar uma existência, produz duas: a que investiga e a sua negação. O acabamento irônico do romanesco, como desde Quixote, no mínimo, sustenta no duplo o movimento coerente da intriga. A “boba” Macabéa exige uma rede de relações linguísticas que explicite sua condição, mas isso força o artifício do gênero. De sua personalidade, fica a também paródica compaixão que sentimos por um ser que, ao morrer, mata a narrativa, isto é, mata nossa necessidade de sermos irônicos. 

BRECHT, Bertolt. Teatro completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
SINGER, Isaac  Bashevis. 47 contos de Isaac Bashevis Singer. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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