Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli, começa quando Paulo Mutarello retorna sozinho para sua casa, após ter sumido por um ano com sua mulher e filha. O texto segue a rotina do protagonista, enfatizando a estranheza de seus amigos e familiares pelo fato de ele não se lembrar de nada, nem conseguir sentir tristeza ou culpa. Principalmente, devido à confusão temporal em que ele se encontra.
Ele não sentiu o tempo passar e tem a impressão de ter se ausentado por algumas horas apenas. Ao descobrir que perdeu a mulher, parece que seu casamento nunca aconteceu e que sua vida conjugal fora algo adiado para um futuro hipotético e distante. O protagonista chega a pensar se tudo não é uma previsão, isto é, que ainda iria se casar e ter filhos, ou mesmo se não seriam os outros que avançaram no tempo, como revela durante uma sessão de psicanálise (26). Por não ter sentido o tempo passar, não sente também falta das pessoas e, como Mersault, esta frieza irá causar a desconfiança dos demais, num jogo de enigmas que beiram o policial. Mas não é pela estranheza misteriosa e enigmática do texto de Mutarelli que estamos falando dele. Introduzimos a obra aqui devido à sua escolha estilística principal. O romance é contado somente com diálogos.
Assim, estamos no limite entre dois adjetivos ficcionais, o dramático e o romanesco. O dramático preza pelo imediatismo da ação e, para um sujeito que age como se não houvesse passado um dia sequer - após sua ausência de um ano -, o procedimento é certeiro. A presentificação absoluta do eu e de suas ações, decorre não só da temática exposta, mas do artifício usado.
A ênfase na voz dos seres também ajuda a manter o mistério do que teria realmente acontecido e se manifesta de forma mais radical quando os personagens deixam de completar informações(62), ou nos relatos orais que não chegam a lugar nehnum em inúmeras sessões de psicanálise. O comportamento lacunar do discurso oral é ativamente manifesto quando o protagonista pede ao seu psicanalista: “Então, doutor. Interprete o meu silêncio” (65), pedido que se estende a nós, leitores, também.
As lacunas também estão presentes nas inúmeras reticências usadas em muitos trechos do livro. As reticências são insuficiências da linguagem. É o momento em que o texto admite a (ou usufrui da) insuficiência do signo e exige que procuremos explicações externas ao texto. Complementares a elas, são os espaço em branco que entremeiam os diálogos, geralmente marcando mudanças espaciais, mas que visualmente representam a ausência de postulados semânticos seguros, que também refletem, obviamente os espaços incompletos na mente de Paulo.
Mas talvez o aspecto mais inquietante de Nada me faltará, decorrente da organização em diálogos, seja a exclusividade do “mostrar”, em detrimento do “dizer”. Aquele, iguala a temporalidade de leitura com a temporalidade da história e sua forma mais pura é o diálogo. Este, acelera a narrativa, pois escolhe só o essencial a ser contado, tendo como forma mais plena o resumo. Assim, no livro de Mutarelli tudo é essencial e lemos as cenas na mesma velocidade (ou chegamos bem perto disso) em que elas acontecem. Se nada é acessório, então tudo significa. Nada nos é escondido. Num caso como esse em que, mesmo assim, terminamos o livro sem possibilidades seguras de sentido, subverte-se a lógica da narrativa. Desconfiamos de sua formatação, ainda que ela seja a única ponte entre nós e a proposição de seu mundo. Em Nada me faltará, felizmente, falta tudo que nos garanta verdades finais.
MUTARELLI, Lourenço. Nada me faltará. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.
Autor do texto: Daniel Baz dos Santos
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