domingo, 18 de março de 2012

O que não falta em Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli


Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli, começa quando Paulo Mutarello retorna sozinho para sua casa, após ter sumido por um ano com sua mulher e filha. O texto segue a rotina do protagonista, enfatizando a estranheza de seus amigos e familiares pelo fato de ele não se lembrar de nada, nem conseguir sentir tristeza ou culpa. Principalmente, devido à confusão temporal em que ele se encontra.
Ele não sentiu o tempo passar e tem a impressão de ter se ausentado por algumas horas apenas. Ao descobrir que perdeu a mulher, parece que seu casamento nunca aconteceu e que sua vida conjugal fora algo adiado para um futuro hipotético e distante. O protagonista chega a pensar se tudo não é uma previsão, isto é, que ainda iria se casar e ter filhos, ou mesmo se não seriam os outros que avançaram no tempo, como revela durante uma sessão de psicanálise (26). Por não ter sentido o tempo passar, não sente também falta das pessoas  e, como Mersault, esta frieza irá causar a desconfiança dos demais, num jogo de enigmas que beiram o policial. Mas não é pela estranheza misteriosa e enigmática do texto de Mutarelli que estamos falando dele. Introduzimos a obra aqui devido à sua escolha estilística principal. O romance é contado somente com diálogos.
Assim, estamos no limite entre dois adjetivos ficcionais, o dramático e o romanesco. O dramático preza pelo imediatismo da ação e, para um sujeito que age como se não houvesse passado um dia sequer - após sua ausência de um ano -, o procedimento é certeiro. A presentificação absoluta do eu e de suas ações, decorre não só da temática exposta, mas do artifício usado.
A ênfase na voz dos seres também ajuda a manter o mistério do que teria realmente acontecido e se manifesta de forma mais radical quando os personagens deixam de completar informações(62), ou nos relatos orais que não chegam a lugar nehnum em inúmeras sessões de psicanálise. O comportamento lacunar do discurso oral é ativamente manifesto quando o protagonista pede ao seu psicanalista: “Então, doutor. Interprete o meu silêncio” (65), pedido que se estende a nós, leitores, também.
As lacunas também estão presentes nas inúmeras reticências usadas em muitos trechos do livro. As reticências são insuficiências da linguagem. É o momento em que o texto admite a (ou usufrui da) insuficiência do signo e exige que procuremos explicações externas ao texto. Complementares a elas, são os espaço em branco que entremeiam os diálogos, geralmente marcando mudanças espaciais, mas que visualmente representam a ausência de postulados semânticos seguros, que também refletem, obviamente os espaços incompletos na mente de Paulo.
Mas talvez o aspecto mais inquietante de Nada me faltará, decorrente da organização em diálogos, seja a exclusividade do “mostrar”, em detrimento do “dizer”. Aquele, iguala a temporalidade de leitura com a temporalidade da história e sua forma mais pura é o diálogo. Este, acelera a narrativa, pois escolhe só o essencial a ser contado, tendo como forma mais plena o resumo. Assim, no livro de Mutarelli tudo é essencial e lemos as cenas na mesma velocidade (ou chegamos bem perto disso) em que elas acontecem. Se nada é acessório, então tudo significa. Nada nos é escondido. Num caso como esse em que, mesmo assim, terminamos o livro sem possibilidades seguras de sentido, subverte-se a lógica da narrativa. Desconfiamos de sua formatação, ainda que ela seja a única ponte entre nós e a proposição de seu mundo. Em Nada me faltará, felizmente, falta tudo que nos garanta verdades finais.

MUTARELLI, Lourenço. Nada me faltará. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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