domingo, 18 de março de 2012

Jennifer Egan e a forma cruel


A visita cruel do tempo, que deu o Pulitzer de ficção (2011) à Jennifer Egan, põe a questão do realismo na literatura mais uma vez em pauta. Nele acompanhamos 50 anos da sociedade norte-americana, impossíveis de serem resumidos, mas guiados por personagens como Lou, um figurão do mundo da música e escroto assumido; Bennie, guitarrista punk, cujo grande feito foi descobrir os Conduits; Bosco, guitarrista da banda descoberta; Sasha, secretária de Bennie; Scotty, guitarrista da antiga banda de Bennie, e que será responsável por um dos tantos momentos em que indivíduo e sociedade formam uma comunhão na prosa norte-americana; entre muitos outros.
Apesar da forte carga de envolvimento gerada entre os leitores e estes personagens, todos eles são um delicioso pretexto para que Jennifer Egan mostre toda sua virtuose no domínio das técnicas narrativas do romance. Um esforço que permite um panorama estrutural das muitas possibilidades assumidas pela forma romanesca ao longo de seu desenvolvimento e seus variados graus de aceitação. Temos todos os tipos de narradores, em primeira, terceira e até um exercício de segunda pessoa. O tempo não segue cronologia, organizando-se ao sabor da necessidade semântica do texto. Mas o que é mais impactante no trabalho da autora é a múltipla experimentação discursiva, a partir do uso de diversos códigos e estilos de escrita, que permitem acessar as múltiplas experiências dos seres que compõem este mundo ficcional. Vamos a eles.
O livro começa convenientemente com a tradicional terceira pessoa para nos apresentar Sasha, cleptomaníaca secretária de Bennie e que frequenta constantemente sessões psicanalíticas com Coz. Juntos eles perseguem o objetivo de recriar suas histórias, no intuito de curá-la. Muitas cenas passadas contadas por Sasha são intercaladas à terapia, numa forma de vincular seu temperamento doente à sua identidade narrativa. Além disso, o olhar é externo, pois trata Sasha de forma clínica, introduzindo o tópico das patologias psíquicas que acompanharão muitas das personagens, como Bennie e Rhea. No caso do segundo, apresenta-se um prisma complementar ao de Sasha, pois Bennie também tem um complexo e deseja curá-lo. O complexo: uma estranha impotência aparentemente sem razão. A cura: beber café e... ouro.
Rhea será a narradora no terceiro capítulo. A mudança para a primeira pessoa aqui é fundamental, pois neste momento conheceremos toda a geração da década de setenta que irá desembocar com seus projetos e fracassos cinqüenta anos depois no final diacrônico do livro. É importante que os conheçamos de dentro, pois a limitação focal estabelece a incompletude, a ausência de totalidade que este grupo irá representar numa alegoria da sociedade americana dos últimos anos (impossível não pensar em Jonathan Franzen, voltaremos logo a esta comparação)
Depois de mais uma série de mudanças de foco, que será muito entediante continuar resumindo, chegamos ao capítulo nove, que narra a entrevista da atriz Kitty Jackson, dada ao jornalista Jules Jones. Neste ponto, o grotesco e o cômico dominam o tom da narrativa, pois, imitando uma típica entrevista de revista (com o hilário título “Um almoço em quarenta minutos: Kitty Jackson revela tudo sobre amor, fama e Nixon!”), Jules Jones tentará estuprar a célebre estrela. Outro artifício eficaz deste capítulo é atingido a partir da excessiva intercalação de frases, pouco usada até este momento da trama. O recurso investe, primeiramente, na hesitação do sujeito em conflito com o que irá ser confessado, mas também sinaliza para a tensão interna ao próprio discurso, pois racionaliza um momento de perda de razão. Basta notar como mesmo no ataque em si, o narrador não perde a retórica contida e cerimoniosa (e, por isso, farsesca) que uma entrevista desse tipo suscita (178).
A dificílima segunda pessoa é usada no capítulo 10 “Fora do corpo”, em que a voz narrativa se dirige a Rob, amigo de Sasha, personagem central desta etapa: “Seus amigos estão fingindo ser todo tipo de coisa, o seu dever é chamar sua atenção quanto a isso”, assim começa o capítulo. Não sabemos se é uma instância discursiva superior que se dirige a Rob ou se é ele mesmo, e essa dúvida faz parte da indefinição identitária do personagem. Ele é meio gay, ele meio que ama Sasha e seu trajeto termina num suicídio no mar meio estimulado, meio ao acaso. O foco aqui preenche uma necessidade existencial, tentar absorver o eu de fora, mas mantendo sua centralidade.
Antes de terminar o livro, Egan ainda irá nos presentear com um acertado capítulo narrado por Alison, filha de Sasha, cuja intimidade é expressa a partir de uma seleção de 76 slides, como num PowerPoint. Mais uma vez a escolha do código é eficaz. Primeiro, pois, com naturalidade, somos introduzidos a lógica de sua mundivivência. Os slides também são um tipo de linguagem fragmentada, cheia de espaços e que funcionam análogas à obsessão do irmão de Alison, Lincoln. Este, passa seu tempo procurando e interpretando as pausas de músicas como “Foxy Lady”, de Jimmy Hendrix e “Young americans”, de David Bowie.  A leitura lacunar de gráficos e tabelas e a estranha coleção de pausas do irmão reforçam a incompletude de um texto que exige que interpretemos seu silêncio.
Bem... Todos estes recursos inserem o livro de Jennifer Egan em duas discussões.  A primeira é mais local, norte-americana por excelência e busca o lugar da autora numa prosa dividida entre as narrativas que decretam sua insuficiência, na linha de Thomas Pynchon e os realistas que tem por trás de si a tradição do século XIX e depois de si, contemporâneo a Egan, nomes como Jonathan Franzen. Neste ponto, A visita cruel do tempo parece uma tentativa de síntese das duas vertentes. Preocupa-se em expor valores humanos, usando técnicas inovadoras o suficiente para agradar o público e para manter a proximidade ente ele e a função comunicativa do texto. O interesse desinteressado de Kant, pois notamos as espertezas da ficção, mas não conseguimos deixar de nos emocionar com seu universo imaginário.
 Um livro que aposta na insuficiência da forma, buscando alternativas, que, pelo grau de estranheza, enfocam o caráter ilusório da narrativa; mas também o incorpora à tentativa de representar a naturalidade criando uma situação paradoxal que introduz a segunda discussão. Esta, referente à literatura de toda parte e tempo, representa toda a ênfase experimental, traduzida pelos impasses dos movimentos modernistas. Toda obra com esta orientação, deve impor a autonomia de seus processos construtivos, negando com isso qualquer semelhança fundamental com organizações funcionais vistas como naturais no interior de realidades sociais historicamente determinadas. A crítica é externa, à organização da realidade, e também interna, à naturalização da percepção artística.
As formas naturalizadas são o depositário da ideologia dominante, ou seja, onde ela se afirma com mais violência. Por isso, a arte pode investir de forma contra-ideológica, e o faz desvelando seu próprio processo de produção. Tal atitude investe na relação fetichisada com o mundo, que impede que o sujeito apreenda os fatores de produção das formas, e aliena daquilo que determina os sentidos. Mas em a visita cruel do tempo este complexo é muito ambíguo. Pensemos no capítulo do PowerPoint, o mais impactante do livro. Trata-se de um código ainda não convencionalizado pela literatura, mas amplamente legitimado pela cultura. Assim, para criticar a sociedade atual, a narrativa adota um ponto de vista interior da sociedade, e popularizado em sua lógica, o que dilui um possível paradoxo, para converter o texto de Egan num texto realista tradicional, à moda de Dickens e Balzac.
Por isso, também foi fundamental a explanação inicial dos tipos de narradores do livro. Ora, o narrador, originalmente, é a identidade da experiência da história. É ele que permite a continuidade e a articulação. Contamos com sua presença nos defendendo do caos. Mas intimamente também contamos que ele saiba quem somos e entenda que não nos contentamos sempre com o mesmo. Narrar em PowerPoint não é uma impertinência, pois narramos nossas historias nele. Estamos muito mais perto do narrador arcaico de Benjamin do que poderíamos supor, pois se trata aqui da experiência coletiva representada através da tecnologia coletiva.
É também uma reafirmação do canibalismo romanesco. Tudo que lhe serve é por ele incorporado em sua adaptação pela sobrevivência. Principalmente depois dos anos 60, no mínimo, a noção de realismo precisa se alargar. Se realismo é identificação com o real, numa sociedade regida pela lógica mercadológica a arte é uma forma-mercadoria. Jennifer Egan está ciente disso e transita no limite da vanguarda, ainda realista até os ossos. O tempo também é cruel com as formas, a sua aprendeu a esconder as rugas.

EGAN, Jennifer. A visita cruel do tempo. Rio de Janeiro. Intrínseca, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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