domingo, 15 de setembro de 2013
O Pato Fáustico - Nocilla Dream e Flex Mentallo
O Pato Faústico de hoje fala de dois lançamentos importantes. O controverso "Nocillla Dream", romance-fenômeno na Espanha e "Flex Mentallo", de Grant Morrison e Frank Quitely, relançamento aguardadíssimo. Para fechar o pacote, recomendamos os ótimos trabalhos de Paulo Crumbim e Cristina Eiko, "Quadrinhos A 2" e "Gnut". Aproveitem !!!!
A barbárie de Nocilla dream

O livro é
composto por 113 capítulos curtos e curtíssimos, cada qual focalizando um
determinado personagem ou situação, algumas delas se interconectando no
decorrer do livro. Se há algum ponto de unidade, este se refere ao espaço: a
US50, uma estrada do Nevada, na qual há uma árvore repleta de sapatos, cuja
origem vai ser contada e desmentida durante todo o livro (até o penúltimo
capítulo).
Antes de
falarmos dos problemas, comecemos pelo ponto forte do livro, ou seja, sua capacidade
inventiva. Muitas são as histórias contadas pelo narrador de Agustín.
Conhecemos um boxeador, cujo objetivo é percorrer a estrada citada a pé; um
hotel que faz um museu de objetos achados; um fotógrafo dinamarquês criador de
duas vertentes estéticas peculiares; um músico que utiliza sons urbanos como
instrumentos de suas obras; anciãos surfistas; para ficar somente naqueles que
aparecem em pouco mais de 50 páginas de romance. Seguem-se a estas inúmeras
narrativas, uma série de citações explícitas no texto e que também provém dos
mais diversos lugares. Lemos o trecho de um texto científico sobre computadores
já na primeira página (p. 9), a opinião de Luis Arroyo sobre realidade
aumentada, uma passagem de Thomas Bernhard (p 59), a exposição de um dicionário
de física (p. 156), entre muitos outros achados.
Seguindo o
caráter paratático, desconexo da narração, muitas destas citações aparecem
deslocadas e não raras vezes descontextualizadas, deixando evidente a
necessidade do restante do texto de onde foram tiradas para serem compreendidas,
a exemplo daquela retirada do livro sobre cinema de Daniel Arijon (p. 70/71)
(que, aliás, oferece uma chave de leitura para a obra, a respeito da qual falarei
a seguir).
Apesar das
muitas histórias e referências, ou por causa delas, o tom de Nocilla Dream é seco e apático. Talvez
acompanhando a despersonalização da cultura de massas que contextualiza seu
andamento de tipo “zapping”. Nesse sentido, Agustín tenta fazer com a televisão
o que John Dos Passos fez com o cinema no início do século. Sua “trilogia U.S.A”, iniciada em Paralelo 42 (tendo um ponto geográfico também como eixo, portanto),
investe na narrativa multifocada de vários cidadãos americanos, entrecortados
por vidas anônimas, história de grandes personalidades e os famosos Camera eyes, capítulos influenciados
pela técnica cinematográfica russa, em uma panorama fragmentado semelhante ao
de Nocilla Dream, ainda que
infinitamente melhor realizado.

É possível,
portanto, ver nos exemplos citados a maneira na qual Nocilla
dream oscila entre o óbvio e o obscuro, entre a constatação mais simples e
o mais intrincado discurso. A forma é ambígua. Seu andamento paratático impede
a subordinação de seus enunciados a um centro e isso fere a teoria clássica da
estética. O discurso claramente se quer barbárie, como se a única forma de
criticar a sociedade que o produz fosse fugindo de suas zonas confortáveis de
enunciação. Como se a única maneira de buscar o novo fosse revelando a
impotência da razão.
A vinculação
deste projeto remete ao modernismo, que impôs aos criadores protegidos sob seu
manto a busca constante de novos padrões organizadores da linguagem. O tempo
foi o principal atingido. Acredito que o espanto diante da sua
irreversibilidade passou a figurar os mundos desordenados das obras
modernistas. Se não podemos mais nos relacionar com nosso passado de forma
natural e orgânica (Proust escreve sete volumes sobre esta procura impossível),
então que se abandonem as relações causais nas nossas representações. Foi isso
que Adorno parece ter visto em um dos pilares de sua teoria estética, ou seja,
a música de Schönberg.

MALLO, Agustín Fernández. Nocilla Dream. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Autor: Daniel Baz
Flex Mentallo, o herói que precisávamos
“O
espelho está farto de futuros” – Sylvia,
uma
das personalidades
de
Jane maluca na
Patrulha
do destino (vol. 30)
Leio meu
texto e percebo seu fracasso. É que falar de Flex Mentallo é uma tarefa tão difícil quanto ingrata. Feita por
Grant Morrisson e Frank Quitely, a obra foi publicada como série em 1996 e,
finalmente, é lançada entre nós pela Panini, em um encadernado belíssimo.
Morrison dispensa apresentações. Já Quitely, um dos meus desenhistas favoritos
e que é responsável por inúmeros trabalhos de peso com seu habitual
colaborador, infelizmente não. O escocês começou a parceria com Morrison justamente
em Flex Mentallo, trabalho que seria
seguido por clássicos como We3, Grandes astros: Superman, Novos x-men, entre outros.

O processo de referenciar
Charles Atlas, já inserido na mídia que veiculava a história, ainda que de
forma paratextual, e redimensionar sua presença, confundindo os níveis do
objeto estético, é a primeira sacada brilhante do roteirista. Além
da metalepse proposta, sugere-se também o poder de transformação que os
quadrinhos detêm, podendo se relacionar diretamente e de forma construtiva com o
real. Os poderes de Flex seguem esta linha e são incríveis, como é comum no hall
de personagens bizarros da Patrulha. Toda vez que flexiona os músculos, a
realidade é alterada de alguma maneira, movimento que é acompanhado de uma
auréola na qual está escrito “herói da praia”. A “homenagem” rendeu um processo
a DC Comics, o que impediu a republicação da história até 2010. Eis o background da atual edição.
Pode se
dizer, pecando pela síntese, que o enredo da obra se divide em três partes.
Flex se envolve com um grupo terrorista, a faculdade X, enquanto procura um
antigo conhecido, O Fato – famoso por suas frases feitas que afirmam o óbvio
(no contexto da Patrulha do destino) e que funcionam de maneira irônica neste
novo universo. Ao mesmo tempo, Wallace Sage, o criador de Flex e Fato, mas
também um grande rock star, está sendo atormentado por delírios, causados pelo
uso de drogas pesadas, o que o faz fantasiar com sua infância leitora de
quadrinhos de super-heróis, enquanto conversa com um desconhecido ao telefone,
o que permite a Morrison uma digressão emocionante sobre a nostalgia dos
quadrinhos antigos. Contudo, estes ambientes não são distintos e é difícil
saber qual deles é real, visto que se interferem mutuamente. Cercando tudo
isso, há ainda um universo mais amplo no qual os super-heróis temem sua
extinção, causada por uma energia maléfica denominada “Absoluto”. Ela foi
responsável por ter enviado os heróis para o mundo ficcional (sim, aqui eles
existiram um dia) e agora torna-se a grande causa que os expulsou de volta para
a vida. Sendo assim, tudo é posto em cheque, a ficção a tudo contamina, e, nesse
furor metalinguístico, Morrison e Quitely mostram todo seu brilhantismo.
Já na introdução
do texto (cuja história, leitor incauto, foi totalmente inventada), reclama-se
da dificuldade em lerem-se os quadrinhos “moderninhos”, já que “tem que ser um
novo Einstein ou Stephen Hawking para entender o que diabos se passa nesses
gibis.” Esta discussão estará presente em todo o trajeto de Flex e se relaciona
com o momento em que a obra foi originalmente publicada, uma vez que ela se relaciona
com a “crise das infinitas terras”, evento que acabou com os universos
paralelos da DC na década anterior, mantendo uma única versão de cada herói,
algo que Flex Mentallo revê (principalmente no último volume em que a “Legião
das legiões” enfrenta o absoluto). Flex, portanto, também é um herói
sobrevivente de uma “crise” em seu mundo.

Mais do que
isso, na primeira cena da obra, O Fato está fora de quadro e joga a bomba que
dará início a realidade, espécie de big
bang que é substituído, em uma refinada transição, por um ovo (signo da
criação de nova vida). As mesmas páginas mostram Flex visto de muitos pontos de
vista, num repertório angular diverso que manifesta seu ingresso na
multirrealidade, além de expressar certo fetiche com o arquétipo do
super-herói, destrinchado pelos olhos ávidos do leitor (p. 16 -17).
Seguindo esta
múltipla focalização, análoga aos múltiplos aspectos do real, Morrison pode
voltar a um dos temas que mais o intrigam e que pululam em todas as sagas da
Patrulha do destino, ou seja, a impossibilidade de fixar um conceito de real.
Na sua contribuição à série dos heróis, temos inimigos como os homens-tesoura
que recortam as coisas da realidade, ou o difícil caso do quadro que engoliu
Paris. Aqui, retornam os personagens que tem problema com realidade (p. 48) e as
cenas emblemáticas de um mundo no qual a ficção e o cotidiano se intercambiam –
Flex num espaço cheio de portas vê TV (p. 24).

A terceira
página das três primeiras edições, por exemplo, são páginas inteiras de Flex
encarnando uma destas disposições: na primeira, exibindo todo seu heroísmo
bonachão; na segunda, enfrentando suas fraquezas absurdas; na terceira,
amargurado e sombrio, caminhando sobre a chuva; no quarto volume (pós-moderno),
ainda que a página não seja mais a terceira, vemos a célebre imagem de seu
corpo repleto de quadros menores que focalizam certas partes suas, num
exercício de desconstrução quase finalizado. Da mesma forma, a terceira capa é
uma paródia da capa de O cavaleiro das
trevas, mantendo em destaque a tanguinha de Leopardo de Flex. Referindo o
clima sombrio das histórias desta época, a primeira frase do volume é
categórica: “Eu não acredito em super-heróis” (p. 65), que se segue ao
explícito trecho: “Agora os super-heróis são tão merda quanto os rejeitados que
escrevem e desenham e leem eles. Todos os heróis entraram na terapia e não
sobrou ninguém para cuidar da gente.” (p. 75). Toda a reinterpretação do mundo heróico
começa a fazer sentido, afinal “As bombas da faculdade X não destroem objetos,
e sim certezas.” (p. 77). Mais do que isso, a própria decadência de Sage pode
ser lida em paralelo com a decadência dos seus heróis prediletos.

Autor: Daniel Baz
Memória sem ressentimento em Quadrinhos A 2

Já falamos aqui no Pato
Fáustico da importância dos quadrinhos autobiográficos no cânone contemporâneo.
Muitos deles, aliás, já foram analisados por aqui. Além da cada vez mais excessiva
espetacularização do cotidiano pessoal (cujo auge se traduz nos inúmeros reality shows que se sustentam há anos
na TV) e de certa descrença generalizada no futuro vindouro (o pós-apocalipse
nunca foi tão especulado), a autobiografia atualmente se legitima pela força do
testemunho, do resgate do passado alheio e da palavra empenhada do sujeito que
sabe melhor do que ninguém o que diz, afinal, foi ele quem viveu para contar.
Certos fenômenos da história
recente, com ênfase no Holocausto e nos regimes totalitários que assolaram o
mundo, estabeleceram o valor cultural da memória e do relato autobiográfico de
uma vez por todas em nosso imaginário, transformando o exercício mnemônico em
um bem comum e uma necessidade jurídica e moral (é o que pensa Beatriz Sarlo em
Tempo passado, por exemplo). Tal
situação marcou algumas das experiências mais fundamentais das histórias em
quadrinhos, a exemplo de Maus, de Art
Spielgman, Persépolis, de Marjane Satrapi,
Retalhos, de Craig Thompson, entre outros.
Contudo, se o costumeiro é o tratamento denso da experiência subjetiva,
preocupado com questões maiores do que a situação imediata do sujeito – algo
evidente nos três exemplos citados anteriormente –Paulo Crumbim e Cristina Eiko,
no delicioso projeto Quadrinhos a 2, se
aproveitam com leveza e humor do capital cultural reservado à autobiografia em
tempos atuais e utilizam o potencial do relato testemunhal de forma
diferenciada.


Por muitas vezes, os autores
tematizam a sua preocupação com os leitores, chegando ao ápice de propor um
labirinto (sim, daqueles expostos em qualquer revista infantil) para o leitor
resolver (p. 117), ou usar um “recurso avançado de quadrinhos” para ver Paulo
debaixo d`água com a cara enterrada na areia após dar um mergulho (p. 56-58).
Justamente por esta expressa preocupação com a recepção, os vários recursos
autorreflexivos não caem no pedantismo, já que estão intimamente entrelaçados
com o cotidiano dos personagens, imersos neste mundo de quadros e traços.

Autor: Daniel Baz
Assinar:
Postagens (Atom)