“A
cultura diz-se sempre no plural” – Mia Couto

Contudo, a
história não é narrada pelo intelectual urbano (antes um contraponto do lócus discursivo do livro), mas pelo
diário de duas personagens: o próprio caçador e Mariamar MPepe, habitante da
aldeia, intimamente ligada aos ataques, visto que sua irmã é a primeira vítima
dos felinos ainda no início do romance (com o tempo, saberemos que ela tem
ainda mais ligações com os ocorridos). Sendo assim, fugindo das últimas crônicas
familiares que caracterizam sua produção mais recente, o moçambicano retorna
para o tipo de ficção mezzo fantástica
mezzo política que o consagrou (em
livros como Terra sonâmbula e O último vôo do flamingo).
Dentre as
categorias da narrativa, a espacialidade é, mais uma vez, motivo de destaque. Afinal,
a experiência de um espaço complexo e polivalente, sacroprofano se conjuga ao
andamento detetivesco da trama (outra estratégia comum de Mia Couto, mas,
estranhamente, não muito discutida entre seus comentaristas). Além disso, o
espaço não é apenas um produto da representação nos textos do moçambicano, mas
também uma ferramenta de focalização, ou seja, interfere diretamente na
perspectiva da história contada e nas suas possibilidades interpretativas. Daí
a importância dos múltiplos narradores, ou das refrações surgidas no interior
da narração (como o tradutor em O último
vôo do flamingo, por exemplo). O
narrador em Mia Couto é ele próprio um espaço repleto de condicionantes,
fundamentais para a interpretação do todo.
Já a
linguagem aposta no terreno conquistado pelo escritor nos últimos anos, sem
mais ousadias, relativamente acomodada no bem sucedido projeto lingüístico que
o autor desenvolve de livro a livro. A tradição oral é novamente revisitada,
contribuindo na elaboração do espaço e ritmo da obra. Nesse sentido, a utilização
de ditos populares e provérbios nas epígrafes de todos os capítulos (estratégia
presente em muitos de seus livros) volta a aparecer. A estratégia se filia ao
aprendizado da poética de autores do quilate de Guimarães Rosa. Como o próprio
Mia Couto não se cansa de revelar, o brasileiro utiliza da oralidade como forma
de “escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento.”

Por fim, outra
forma de enviesar as teorias do reflexo simplórias ou as relações causais
facilitadoras é a escolha do “meio” que organiza sua prosa em A confissão da leoa. O gênero diário é
uma forma pessoal, íntima, de discurso. Voltada para si, ele pode se contrapor
à ideia de romance (ainda mais o
politicamente orientado), já que concentra todos os seus conteúdos a uma única
mundivivência fechada em si e cujo acesso completo jamais pode ser
integralmente transmitido (basta perceber a leitura que teóricos diferentes
como Bakhtin e Phillipe Lejeune fizeram dele), e tem seus limites testados
aqui. Se notarmos que, como já fizera em outros textos, Mia Couto gosta de
misturar pontos de vista internos (de dentro do cenário da fábula) a outros
externos, a escolha do diário parece ainda mais acertada. O resultado é um tipo
de texto inquieto, responsável por organizar o mundo em diversos níveis hierárquicos
e diversas formas de legitimação.

* O nome da personagem morta, Silencia, por exemplo, alegoriza um ponto importante desse
revisionismo histórico, isto é, a interrupção e emergência de vozes silenciadas
na própria comunidade, principalmente a feminina, e que será um dos discursos
fortes de A confissão da leoa.
COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
Olá, Daniel!
ResponderExcluirEu costumo ler os posts do blog, mas em geral não comento. Gosto especialmente das resenhas sobre quadrinhos, mas resolvi comentar sobre tua análise de "A confissão da leoa" pois recentemente li esse romance e ele me deixou meio ensimesmado... Vou compartilhar contigo minha visão só para problematizar um pouco tua análise positiva do romance. Não me leve a mal! =D
Me chamou muito a atenção o mitema (eu sou bem Durand em minhas análises) da caça no romance, da relação entre o caçador e o caçado e da busca do caçador de si mesmo no ato de caçar. Achei legal a relação que Mia Couto fez da escrita de si com o ato de caçar tanto nos diários do caçador Arcanjo Baleiro quanto nos diários da "caça" Mariamar(que se converte, paradoxalmente, em caçadora).
Eu fiquei pensando também, como tu, no aspecto que ele tematiza na obra: a violência perpetrada contra as crianças e mulheres dentro da problemática história africana. Pelo mitema da água ("o rio, o rio, o rio", nas tuas palavras) me parece que a "salvação" do autoritarismo pelo o que tu chamas de misticismo, característica do Mia Couto, se dá numa tentativa de produzir uma narrativa que enfoque símbolos/imagens de uma mitologia mais matriarcal (como no "Deus um dia foi mulher." ou na história que a mãe do Arcanjo conta para ele sobre a noite e o sol). Subverte-se assim uma sociedade autoritária e patriarcalista pela revalorização mítica do feminino.
Minha implicância com o romance é justamente na exploração dos simbolismos da água. Eu não estou mais com o livro em mãos, mas lá pelo final do romance o encadeamento de imagens no diário da Mariamar fica racionalizado demais. Ela explicitamente faz a relação da obsessão dela pelo rio e pelo mar com o desejo de retorno ao ventre materno (lembro de ser mais ou menos essas as palavras). Escrevendo, ela já se auto-analisa e dá o veredito das pulsações interiores que a fazem produzir suas imagens mentais? Não entendo o motivo desse cerebralismo todo, mastigando os símbolos para o leitor.
Na minha opinião, o desejo dela de morte e renovação em relação com o rio e o mar já estava sugestivamente dado antes dessa afirmação tão esquisita. Achei artificial demais e, de certa forma, um "desrespeito" com a capacidade interpretativa do leitor.
Há outros exemplos desses cerebralismos simbólicos, mas me fogem agora. Tenho muito respeito por Mia Couto, mas parece que ele leu Jung como propedêutica literária, o que deixa a possibilidade de uma leitura simbólica da obra meio "certinha" demais...
No fim, reavaliando o romance, eu acabei achando-o meio "brega", "piegas", enfim, cheio de frases de efeito clamando por serem epígrafes de teses e dissertações.
O que eu mais gostei, e que tu chamou a atenção, é que ele sai do "mimimi" pós-colonialista "eles são culpados, nós somos vítimas" para pensar os problemas internos africanos. Repito também que a relação entre a caça e a escrita no romance eu acho muito feliz.
Abraço e continue com tuas ótimas resenhas!
Oi, Nathaniel.
ExcluirObrigado pelas preciosas observações.
Tentarei fazer jus aos teus comentários.
Primeiramente, tenho percebido (e alguém já me falou) que as resenhas do Pato Fáustico costumam enfatizar o acerto das obras exploradas, o que, como tu notaste, pode parecer uma desatenção com os problemas destes mesmos textos. Geralmente, as resenhas feitas se esforçam em mostrar as boas estratégias utilizadas pelos romancistas e quadrinistas e isto tem um preço.
Acho que são extremamente oportunas as críticas que fazes ao romance. Não havia pensado o texto por intermédio da imaginação simbólica, mas tenho certeza que é uma das chaves semânticas mais coerentes para analisarmos A confissão da leoa.
Contudo, antes de prosseguir gostaria de revelar qual foi minha primeira leitura do romance, baseada numa hipótese a respeito do autor que há anos venho tentando testar e que foi abandonada por não me achar preparado ainda para fazê-la, mas que, acredito, apresenta ressonâncias com a tua. Ela parte de uma contradição da prosa do Mia Couto, já que ela investe na criação de um imaginário anti-conservador, libertário, subversivo (leitores de Bakhtin não resistiriam e diriam “Carnavalizado!”), mas que reside numa expressão de mundo sintático/discursivamente conservadora, seja pelo uso de aforismos e frases feitas, ou, principalmente, pela figuração do mundo por formas predicativas tradicionais e, pior, constatativas:
“Ser velho é esperar doenças” (234)
“Escrever é perigosa vaidade” (p.88)
“Estas são as espingardas do leão” – sobre patas e dentes (p. 101)
“O escritor é uma ave de rapina” (p. 108)
“Estar perdido é bom” (p. 151)
“[,..] essa serpente somos nós mesmos” (p. 153)
Recorrência de usos que força uma autoridade discursiva que parece reduzir o valor anti-convencional da própria metáfora. Eu sempre paro por aqui, pois seguir implicaria uma leitura mais atenta de Ricouer, entre outros autores. Mesmo assim, estes recursos se juntam aos apontados por ti, como se o discurso do Mia Couto fosse muito mais ambivalente do que supomos.
Quanto ao teor “piegas”, também não posso discordar de ti e segue um trecho que se relaciona com as imagens que te interessam, relacionadas à água, pedindo um copia/cole no facebook: “Não te dou apenas um nome – disse – Dou-te um barco entre mar e amar” (p. 125 ou no próximo CD do Reginaldo Rossi).
Quanto à análise dos mitemas, prefiro não me aventurar. Minhas leituras de Bachelard, Durand, etc... são medíocres e jamais chegaria perto dos teus apontamentos. Mas imagino que te refiras a trechos como:
“A terra húmida me abraçou com o carinho que minha mãe me dedicara nos vencidos braços” (p. 234) – acho que, no teu texto, pensas diretamente neste momento;
Ou: “Eu estava sendo parida do ventre de onde se nascem as pedras, os montes e os rios” (p. 234);
Ou ainda: “Talvez por isso, ao sentir-me adormecer, no meu último humano sono, me invada o mesmo sonho. O mar espraiando-se, aves de espuma cruzando os ares, e Arcanjo Baleiro, desta vez , ressuscitando do sono dos afogados [...]” (p. 241)
Enfim... não posso deixar de te agradecer mais uma vez o instigante comentário e, principalmente, por efetivar a função deste blog desde o início: o debate crítico e contrapontístico.
Abraço e comente sempre que puder.
Daniel Baz