“Ninguém escolhe nada e
mesmo assim
a responsabilidade é
nossa.”
O
protagonista de Barba ensopada de sangue,
novo romance de Daniel Galera, possui um raro distúrbio neurológico que o
impede de memorizar a aparência das pessoas. A primeira ironia desta condição reside
no fato de o herói ser professor de natação, o que insere, na sua
responsabilidade de agente da ação, uma competência incomum acerca dos limites
de seu corpo e dos demais personagens que lhe cercam. O não nomeado protagonista,
na cena que abre o romance, visita seu pai. Este lhe revela que irá se suicidar
e lhe incumbe de uma inusitada missão: matar sua cadela Beta, para que ela não
se sinta sozinha após a morte do dono. Contudo, esta é apenas a primeira
motivação do livro que vai se sustentar não na esquisita decisão paterna, mas
no que é dito no diálogo antes da revelação do suicídio, isto é, a história da
morte do avô do narrador em condições misteriosas na pacata cidade de Garopaba,
morte essa ainda sem resolução.
Sim, o
narrador irá se mudar para Garopaba onde passará a dar aulas de natação e, nas
horas vagas, investigar o que houve com seu avô. Entretanto, se descobrimos ao
longo do livro (principalmente no derradeiro capítulo) que o herói tinha outras
motivações para sua mudança, é também impossível apontar a “investigação” como
centro exclusivo do enredo do romance. A relação com a cadela do pai, que o
protagonista decide não matar, o passado conturbado com o irmão e sua mulher
(que foi sua namorada), a responsabilidade ligada à família, o convívio com a
hostilidade da nova cidade (que não gosta das perguntas que ele faz), com os
alunos e com mulheres (com ênfase em Jasmin, com quem sai por um tempo),
permitem a produção de uma linha dramática cheia de curvas e arestas.
O mistério é só
a primeira constante estrutural do romance. O livro está repleto de trechos dissociados
da ação principal, o que prova a maturidade de Galera como romancista. São
assim todas as cenas envolvendo seus alunos ou o simpático amigo budista Bonobo,
por exemplo. A proliferação de experiências, vinculadas às inúmeras veredas
narrativas, empresta certa lentidão ao romance, que se detém nos aspectos
sensoriais do mundo em todas as situações vividas pelo herói. Esta é uma das
formas de lidar com a representação de sua patologia. Nesse sentido, o próprio
mistério a ser desvendado enfatiza e se nutre da lentidão de um texto que
demora a desvendá-lo.
Outra forma
de lidar com o distúrbio do narrador é a importância especial dada às
descrições, algo raro na prosa contemporânea. Elas surgem como uma forma viável
de mimetizar uma consciência que está sempre se reconstruindo, sempre
reaprendendo as aparências - além de render trechos geniais como na cena do
concurso da rainha mirim (p. 188). É interessante notar que, às vezes, no
intuito de criar este efeito, elas chegam atrasadas, a exemplo da primeira cena
com o pai (p. 30). Além disso, elas também funcionam como clama Lukács em seu
ensaio “Narrar ou descrever”, isto é, carregadas de valor, nada gratuitas no
sentido de amparar e realçar as dominantes psíquicas e até ideológicas das
personagens e das cenas relatadas. O detalhamento ajuda a reforçar descrições
de tipo valorativo, que criam um sentido para a ação, como em: “Os túmulos são
tão próximos uns dos outros que as poucas passagens disponíveis terminam em
becos sem saída.” (p. 69), onde a descrição de um espaço limítrofe funciona
análogo à crise das personagens. No momento em que Dália revela que se drogou
antes de sair com o filho, lê-se: “Não dá nada, diz olhando para ele como se
isso fosse óbvio, como se toda pessoa viva já tivesse tomado um ácido e
soubesse que não tem problemas, ora bolas. O malabarista comete outro erro,
dessa vez com as bolinhas.” (p.145), em que o erro do malabarista enfatiza o
julgamento do narrador com respeito à atitude também equivocada de Dália. Na
última cena do livro, em que muito é explicado, a partir da conversa do
protagonista com Viviane, seu antigo amor e atual esposa do irmão, tem-se o
seguinte comentário: “Ele risca quatro fósforos até conseguir acender o fogão”
(p.406), em que essa série de tentativas frustradas explicita a condição mental
do sujeito no tenso embate com seu passado.
Por isso
também, a última forma de lidar com a especificidade do protagonista está na
escolha do tempo do romance. Ele é narrado todo em tempo presente,
característica de algumas obras contemporâneas, mas que aqui adquire um sentido
diferenciado, afinal, os seres vistos pelo herói nunca tem passado, estando
conservados no eterno presente da visão e nunca por intermédio referencial do reconhecimento. Assim, a
primeira palavra do romance “Vê”, além de sinalizar para a experiência
sensorial mais importante do livro, também cria uma ambigüidade interessante
entre imperativo e presente neutro. A solução é acertada, visto que, na já
mencionada última cena do livro, há o embate filosófico entre livre arbítrio
(expresso pelo verbo no presente neutro) e determinismo (atingido se o verbo
for lido como imperativo).
O narrador oscila
entre ser o agente de suas escolhas ou o fruto de um destino pré-determinado, o
que remete ao final da trajetória de seu avô. A barba é o item descritivo
essencial aqui, já que é ela que liga, conforme cresce, a imagem do narrador
(que começa o romance sem barba) com a de seu avô. O ritmo rotineiro de um
enredo sem grandes sobressaltos se torna um trágico embate entre o sujeito e o
coletivo nas duas histórias, visto que a cidade (que já sabemos ter sido a
autora do suposto assassínio) também agride o herói. O enredo parte de um ritmo
prosaico e cotidiano e mostra como ocorre a transmutação de uma ação comum em
mítica. Além disso, o conflito simula um tópico da própria teoria da
personagem, visto que a liberdade do herói é sempre medida pelos determinantes
do autor, como Bakhtin já demonstrou, o que assegura uma espécie de nível
metapoético, em um texto tão preocupado com a ausência deste tipo de reflexão
(basta mencionar que, entre o irmão escritor e o professor de natação, o
romance opta por acompanhar o segundo).
O livro ainda
tem grandes sacadas, como a presença de textos de secretárias eletrônicas,
chamadas telefônicas, e outros depoimentos em rodapés, geralmente alheios à
perspectiva que o herói tem das coisas e, por isso, legadas ao submundo do
texto. Contudo, antes de encerrar, ensaio uma proposta de leitura aparentemente
ainda não feita a respeito do livro de Galera. Sabe-se que o romance gaúcho
oscilou algum tempo entre duas alternativas que, para alguns, pareciam
excludentes, a saber, o regionalismo e o urbanismo (ou cosmopolitismo). Ao
lidar com um protagonista urbano que se muda para um ambiente mais ligado à
natureza e que se sente cada vez mais próximo ao avô - apelidado de Gaudério,
representante do gaúcho típico, estrangeiro em terreno catarinense e sempre
disposto a puxar a faca para manter seu ponto de vista – o romance está sinalizando
para a mescla das duas vertentes, assim como, para a superação sem traumas da
necessidade de uma escolha entre elas. Galera herda a narrativa urbana, mas
sabe da imensidão dos temas e dos contornos maleáveis da mimese.
É Jasmin a
personagem que mimetiza esta preocupação do autor, ao ir a Garopaba com o
intuito de descobrir se, em um lugar periférico, os distúrbios psíquicos
diferem dos da capital. Ao se referir à divisão centro e periferia, mencionando
sua pesquisa de pós-graduação, a personagem sustenta que “O tipo de problema
dos pacientes é a mesma coisa que rola em Porto Alegre, em São Paulo, em
Manaus, em qualquer lugar. O que existe de especial aqui é a sazonalidade dos
distúrbios [...] De resto Garopaba é o mundo” (p.263). Entre o local e o mundo,
Galera opta pelo segundo e, ao fazer isso, não permite que nenhuma de suas
dimensões seja excluída a priori do terreno da ficção. O resultado da segurança
do projeto é uma obra-prima, um provável clássico, um livro para guardar e
reler, quando a memória, como no problema do narrador, estiver esfumando suas
características de nossa mente tão cheia de romances errados.
GALERA, Daniel. Barba
ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
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