
Ao final do livro, descobrimos
que Oz é um farsante, vindo também do mundo de Dorothy. Por intermédio de sua
palavra, aprendemos também que todos os personagens já possuíam, no início de
sua trajetória, aquilo que almejavam conquistar durante ela. Aqui, é possível
pensar em muitas ironias trabalhadas nas entrelinhas do texto. O embusteiro
forasteiro nomeia a terra fantástica, o que sinaliza para a semelhança entre
ambos e abre para as interpretações alegóricas. Contudo, há outra característica
que mais impressiona na organização do romance.
Ela se sustenta a partir da
grande mensagem do livro (certamente irônica também, se pensada de forma
estrutural), pois, mesmo tornando o percurso das personagens inúteis (o
espantalho sempre fora inteligente; o leão, valente; o lenhador, emotivo; e
Dorothy já tinha os meios para voltar para casa), a aventura foi genuína, na
medida em que narra a aquisição de três atributos sustentáculos da formação do
humano, como é comum neste tipo de literatura, e é isso que vale. A alegoria
dessa organização dos dados é forte e supõe que os sujeitos já têm as
ferramentas para adquirir o que desejam, independente das figuras de poder que os
cercam (não à toa, muitos leem O mágico
de Oz por intermédio da associação de Baum ao movimento populista). Isso se
torna mais forte ainda, se repararmos que os amigos de Dorothy acreditam em
tudo que o mágico lhes dá, mesmo sabendo que ele não passa de um engodo.

Apesar disso, o romance está
repleto de repetições, situações que estruturalmente são as mesmas e ocupam
função exatamente igual na sequência dos elementos narrativos. Os vários
encontros com o mago, os vários usos dos macacos alados, as perdas seguidas de
companheiros, os retornos subsequentes de cada um deles, as ameaças surgidas e
o enfrentamento individual de cada uma delas; tudo isso oferece certa unidade a
um mundo imprevisível e desconhecido, além de permitir que o hábito adentre a própria
estrutura episódica do enredo, algo natural em uma aventura que tem a
moralização entre os objetivos principais.
Também para atingir esta meta,
Dorothy é composta como uma personagem mediana, que serve para interligar todos
os outros elementos da trama. A personagem sequer se espanta com situações que
provavelmente escapariam ao seu cotidiano natural, como atesta o trecho final
do primeiro encontro de Dorothy com uma bruxa “Mas Dorothy, sabendo que ela era
uma bruxa, já esperava que desaparecesse sem aviso, e não ficou nem um pouco
impressionada” (p. 30).
*

De fato, a obra original e a
adaptação dinamizam dois espaços. A casa onde Dorothy vive é um local
paupérrimo e triste, caindo aos pedaços, feito com madeira velha, pois esta fora
trazida de muito longe, o que insere o peso dos lugares distantes e
desconhecidos na arquitetura cotidiana da menina, ainda antes de sua jornada
ter início. A casa é tão prosaica que o narrador faz questão de revelar que não
tinha nem sótão nem porão, ou seja, possuía um único e modorrento nível,
ausente de qualquer possibilidade de escape ou mistério. O narrador faz questão
de ressaltar também que a paisagem ao redor é plana e sem árvores, condizente
com este mundo miserável e sem fantasia, longe dos centros e da
imprevisibilidade que marcará o percurso da heroína em Oz. Neste lugar em que o
sol comera a cor das tintas, os tios da menina também eram tristes e cinzentos,
e somente Totó trazia alguma alegria (por
isso é ele que a acompanha até Oz).
Sendo assim, para traduzir em
imagens este território, a primeira parte do álbum investe em cores cinzas e
terrosas, que vão sendo substituídas aos poucos pelas vibrantes cores do
universo fantástico. A diferença de cor é acompanhada por um uso diferenciado
também da perspectiva, feita por ângulos deslocados ou postos em lugares
provisórios, como se acostumassem nosso olhar para o insólito universo, o que
traduz a experiência de Dorothy (p. 16). Logo, percebemos também que os contornos dos
objetos e dos seres são curvos, sinuosos, rebeldes, muitas vezes combinando com
um cenário feito a partir de mais de um ponto de fuga, o que reforça a
experimentação com a perspectiva (p. 23), algo que a linguagem direta e franca
do original não explorava.

Todo este repertório
expressionista, ou seja, que expressa com signos externos o interior das
personagens - a exemplo do trecho no qual o Espantalho fala de seu medo fósforos
acesos e as cores do horizonte representam seu temor (p. 30) - combina com o
sentido da aventura, ou seja, encontrar o mago que fará brotar atributos
humanos de dentro dos seres, mesmo que utilize, para isso, de ferramentas
ficcionais, como um coração cheio de serragem, ou colocando pregos e agulhas na
cabeça para simular o intelecto.

Dentre os inúmeros outros
acertos da obra, destaca-se o leiaute muito bem organizado, com a oscilação
precisa entre quadros horizontais e verticais, visando expressar a sensação de tempo
transcorrido (p. 58-61). Outra cena bem construída é aquela quando o Homem de
lata mata um determinado gato e os quadros abusam da elipse para representar,
sem mostrar, a força do ato violento (p. 68). As onomatopeias, também muito bem
pensadas e pontuais, chegam ao seu auge quando servem de linha cinética e representação
gráfica de impacto durante um rugido do Leão (p. 132).
Pode-se dizer, antes de
encerrarmos, que a principal preocupação desta linda adaptação da Marvel é parecida
com a intenção do autor original: trazer para um novo tempo o prazer de ler as
fábulas infantis, mas que mantém a carga existencialista da história primeira.
Logo que chega à terra estranha, é dito a Dorothy que Oz não é uma terra
civilizada (p. 26), talvez por isso seus personagens sejam pura potência de
agir, sejam a manifestação acional de seus objetivos. Além disso, a bruxa em
certo momento chega a mencionar que nenhum deles presta para trabalhar (p.
125), o que reduz o “eu” dos personagens a suas ações genuínas, desvinculadas
de qualquer ação socializada e funcional (no caso, o trabalho).

Autor: Daniel Baz