
A tradição do
que seria o “imitativo baixo” é reexplorada pelo romance de estréia do inglês
Andy Mulligan, Trash. Desta vez, no
entanto, ligado a uma tonalidade incomum: a da história infanto-juvenil. Na
trama três crianças, Raphael, Gardo e Rato vivem a vida, sozinhos ou com seus
familiares, em Behala, um lixão localizado em algum país do terceiro mundo.
Suas vidas são transformadas quando encontram no lixo uma carteira com dinheiro,
um mapa e uma chave dourada, pertences logo procurados pela polícia e que os
leva a uma intriga de dupla natureza, já que devem fugir dos oficiais da lei ao
mesmo tempo em que tentam descobrir o histórico por trás do objeto perdido.

Para isso, é
interessante notar como o enfoque policial, em que a ênfase recai na
investigação por trás do tesouro encontrado, desloca a ênfase na pobreza e no
tratamento da miséria, que aqui é só o cenário da ação. Além disso, diferente
das fábulas clássicas, a importância dos episódios não está em simplesmente
obter a recompensa, mas em descobrir seu histórico e seu valor real. Assim, Trash se torna um exame de personagem,
em que o mais importante é a forma como os seres se relacionam com os objetos e
com as instituições que, geralmente, detém o poder sobre eles (e sobre o seu
histórico). Aí está a principal expressão política do livro, a inserção de
consciências antes excluídas das instâncias legitimadas, por intermédio de uma
informação que escapa ao centro. É dentro deste espiral que a aventura avança e
é a ela que o final humilde e singelo se refere.
Dentre as
técnicas narrativas utilizadas por Andy Mulligan, destacam-se a mudança no tipo
de letras, numa tentativa de particularizar cada um dos garotos, o que funciona
em conjunto com a narração também individual. Cada um dos meninos (e alguns
outros personagens) narram partes distintas do romance, entretanto, não
percebemos uma mudança significativa na entonação dada a cada voz, o que anula,
em termos, a decisão narrativa. As trocas são tão artificiais que são
introduzidas por expressões como “Aqui é o Gardo, vou continuar a história que
Raphael estava contando” (p. 32), “Aqui é Raphael de novo” (p. 40) ou “Ainda é
a Olivia” (p. 100). Isto é, por um lado, explicado intradiegeticamente pela
figura do padre Julliard, quem reuniu os fragmentos da história, entretanto, não
deixa de parecer o receio de um autor com medo que os leitores mais jovens se
percam no meio das idas e vindas da trama. Contudo, o caráter oral torna-se
fundamental quando, mais ao fim da história, o personagem mais desprovido de
bens, Rato, adquire direito a escrita e a registro de sua história (p. 119), um
movimento consciente das poéticas ocidentais, como explícito na abertura deste
texto*. Além disso, ao construir capítulos narrados pelos três ao fim do livro,
a narrativa sinaliza novamente para certa despersonalização da história, o que
torna sua focalização mais ambivalente do que se espera para um conto desta
natureza.

*Interessante também notar que num dos pontos chaves da
trama, um dos meninos deve memorizar uma carta para adquirir certas
informações, o que é uma forma de valorizar e expressar a função do
conhecimento oral da comunidade representada.
MULLIGAN, Andy. Trash.
São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Autor: Daniel Baz
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