
Apesar da
instabilidade de seu signo poético, Leminski, nos textos teóricos que escreveu,
permitiu entrever um projeto autoral bem pensado, explícito em ensaios como “Teses,
tesões”. Aqui, o autor afirma que, depois de Drummond e o seu exercício
metatextual de pensar a lírica no interior do próprio poema, houve uma
problematização do signo poético cuja principal consequência foi a
descontextualização da poesia que passou a não ter mais um lugar fixo nem uma
voz estável. Apesar das possíveis críticas que esta leitura pode receber (a
importância negligenciada de Bandeira, por exemplo), o decisivo em sua
constatação é a percepção de certa ausência de limites para o uso do verbo
lírico. Liberdade que oscilará durante toda a carreira do poeta entre a
comunicação e a invenção, o que o obriga a, na linha de Drummond, também
repensar de dentro o conceito de poesia.
Este pode ser
considerado pelo espanto diante das possibilidades da língua, o que mantém o
poeta em um tipo eterno de infância (“eu quero ver ser poeta com 60 anos” – diz
no documentário Ervilha da fantasia),
em que tudo deve ainda ser conhecido:
“poema na página
mordida de criança
na fruta madura”(p. 83)
A poesia pode também ser
conquistada pela espontaneidade, quase-sem-querer, o que sinaliza para sua
informalidade, ou seja, para sua capacidade de estar em todos os lugares e
poder ser conquistada por qualquer um:
“inverno
primavera
poeta é
quem se considera” (p. 108)
Da mesma forma, a expressão coloquial,
a fala de rua e o conhecimento popular são instâncias saudáveis do gênero
lírico, principalmente, devido à sua imprevisibilidade e sabedoria marginal:
“ a máquina em nós
que gera provérbios
é a mesma que
faz poemas” (p. 261)
Mas, o poema também pode ser, essencialmente, o nada, o
incaptável, o inenarrável, o intraduzível, em raras manifestações de assombro
perante a volubilidade da obra lírica:
“ Aqui jaz um
grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio,
acredito,
são suas obras completas.” (p. 289)
Por fim, e num caminho menos
sugerido e menos explorado pelos intérpretes de sua obra, há uma preocupação
histórica, de responsabilidade com o gênero e sua memória, o que faz o poeta
repensar internamente o valor do que escreve:
Poesia: 1970
Tudo o que eu
faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o
máximo.
Mal rabisco,
não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico
(p. 230)

“nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista
queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
- cala a boca
e pro relógio
- abaixo os ponteiros” (p. 109)
E outras infames:
“Pense depressa.
O que veio?
Quem veio?
Bonito ou feio?
Ninguém” (p. 18)
O primeiro verso “Pense depressa”
já é tributário da ideia do pensar rápido, do consumo desinteressado e
apressado dos produtos. Influenciado pela publicidade e pela lógica de mercado,
tal tiro sai pela culatra em certas passagens, sendo um dos maiores problemas
da obra do curitibano (sacrifícios necessários na busca do verso certo):
“O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda”
Contudo, a mistura de senso
comum, fruto do esperto uso das convenções fáceis, com o achado difícil, fruto
esforçado da labuta, integra uma poética simpática, justamente porque cativa pela
amplitude dialógica. Trechos superficiais típicos da frase feita abundam, o
jargão popular também, disfarçados pelo gesto “estranhador”, facinho de
confundir com o poético, e por que não? Daí um comportamento marginal de muitos
eu - líricos, esforçados em misturar ambientes distintos, principalmente
levando o poeta à rua:
“Ainda vão me matar numa rua.
quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.”(p. 24)
Neste exemplo, o advérbio “principalmente”,
que não tem nenhum sentido se isolado, é, justamente, destacado em um verso só
seu, estratégia que simula, na sintaxe, a oscilação de valores elaborada pelo
ideal do poema. Em outro momento similar, temos o mesmo sentido marginal, dessa
vez em um haikai:
“ de colchão em
colchão
chego à conclusão
meu lar é no
chão” (p. 318)
O lugar excêntrico, fora do eixo,
é valorizado e ambicionado, desejo pungente de vencer distraído e que faz o
poeta falar de si, mesmo quando se refere às pedras, no excelente “Litogravura”:
Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e
cinquenta.
Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta
Felizes as pedras
da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua
esfria
e o sol esquenta. (p. 201)
Tal atitude vem acompanhada da
fuga da lógica ocidental, vitimando, explicitamente, um de seus fundadores:
“CURVA PSICODÉLICA
a mente salta dos trilhos
LÓGICA ARISTOTÉLICA
não legarei a meus filhos.” (p. 89)
Ou atacando a ratio, enfim, ao lado do empirismo, ao
pregar, em muitas passagens, ideias como:
“ os sentidos
sejam a crítica
da razão” (p.
203);
“essa ideia
ninguém me tira
matéria é mentira” (p. 322)
O projeto
editorial, consciente disso, constrói um livro cujas divisões entre os poemas são
feitas por manchas displicentes. Borrões que sinalizam para a materialidade
descuidada da escrita. Sinais da “tentativa e erro”, mencionadas anteriormente,
e, certamente, uma dinâmica das mais adequada para pensar o contínuo da obra de
Paulo Leminski. Esta aparente gratuidade aparece com força na revisão de certos
componentes da lírica, dentre os quais se destaca a normalização do enjambement. Geralmente tratado com
cuidado, o recurso de finalizar o verso, sem que este esteja completo
sintaticamente se torna a norma e não o desvio em muitos poemas de Leminski,
algo que sua geração popularizou para desespero de críticos como José Guilherme
Merquior que os censurava por isso. O resultado é a ruptura completa com a
sintaxe cotidiana, permitindo que o verso seja aquilo que sempre lhe definiu
como tal, ou seja, uma antífrase, um “inutensílio” semântico, entregue a uma
lógica desconhecida.
A sonoridade
é outro caso à parte da poética de Leminski. Uma de suas vias deságua na
relação que o poeta estabeleceu com a canção, sendo os ritmos, aliterações e
assonâncias produtores da musicalidade dos versos. Contudo, este caminho já
explorado amplamente pela futura crítica não me interessa. Outra via de análise
provém do conceito de hipograma, criado por Saussure e transposto para a
interpretação lírica fundamentalmente por Michael Rifatterre. Nesse sentido é
possível ver como os compostos hipogramáticos do cotidiano (frases feitas,
chistes, clichês, etc) são reelaborados também por associações e redundâncias
sonoras, em um esforço de permitir que a própria materialidade do signo seja
responsável por sua semântica. O uso fônico-musical problematiza o hipograma ao
elaborar outros semas sob aqueles cristalizados na linguagem, produzindo um
novo sistema semiótico (ou tentando) a cada texto, cuja leitura revela um idioleto particular.
Antes de
terminarmos é possível notar que, mesmo apostando na displicência motivada e
certa indisciplina, a obra de Leminski não foge à catalogação de temas e
imagens recorrentes. Fico com uma provavelmente ainda não explorada e que
permite dizer muito de sua poética: a imagem da estrela. Esta é reveladora de
uma necessidade de unir o mundo terreno com outro que lhe transcende,
metaforizado pela estrela:
“a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão” (p. 115);
“noite
a vespa pica
a
estrela vésper” (p. 115);
“peguei as cinco
estrelas
do céu uma a uma
elas estrelas
não vieram
mas na minha mão
todas elas
ainda me perfuma” (p. 217);
“hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de
laranjeira” (p. 114);
“na cozinha
debaixo da lâmpada
minha mãe escolhia
feijão e arroz
andrômeda para cá
altair para lá
sirius para cá
estrela dalva para lá (p. 255);
esquentar numa fogueira
o frio que sinto
ao contemplar
estrelas? (p. 120);
“a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa” (p. 91)
Nesse imaginário semi-lúdico, brincar com o céu é homólogo a
brincar com palavras:
“as coisas estão pretas
uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras” (p. 120)
“ Escrevo porque
amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram
letras no papel,
quando o poema me anoitece.” (p. 218)
“lá fora no alto
o céu fazia
todas as estrelas
que podia”
Todas estas citações demonstram o
andamento consciente de um imaginário razoavelmente organizado e repleto de
correlatos objetivos, representativos daquela amplitude de limites, expressa no
início deste artigo (estelares, no caso), que seu verbo procura. Além disso,
esta redundância importa na comunicação estabelecida entre o poeta e seu
público. Leminski é, portanto, um comunicador, esforçado em tirar o máximo de
sua língua, mas também um renovador, espremido pela necessidade de “salvar” o
idioma:
“está nas últimas
a última flor do Lácio” (p. 381)

Leminski, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia as
Letras, 2013.
Autor: Daniel Baz
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