domingo, 28 de abril de 2013
O Pato Fáustico - 2 Pinóquios, o de Collodi e o de Winshluss
No videocast de hoje, falamos de um clássico da literatura ocidental: "Pinóquio", de Carlo Collodi. Além dele, apresentamos uma releitura homônima feita pelo quadrinista francês Winshluss. Duas obras excepcionais para seu deleite. Aproveite!!!
Pinóquio: um herói desentendido e informal

Seu charme
reside na exploração de um tema fascinante, os autômatos, e a instigante
essência do humano, precedido nisso por outros clássicos como o monstro de Frankenstein, a boneca Olívia de O homem de areia e sucedido pelo homem
de lata de O mágico de Oz, a boneca
Emília, de Lobato, etc. Pinóquio é um pedaço de pau animado (e é fundamental
notar que ele já possui vida antes de possuir forma humana) encontrado por
mestre Cerejo e presenteado a seu amigo Geppetto, em busca de material para
fazer um fantoche. Após a construção de Pinóquio, começa um percurso de
inúmeras aventuras, demonstrações episódicas da transformação do boneco em
menino, trajetória alegórica do que seria o ser humano e, principalmente, o que
a sociedade pensa sobre a formação do homem. Dessa forma, o processo de
humanização e de socialização é o centro do texto.
Uma das
facetas destas temáticas aparece na forma como os personagens se relacionam com
a lei. Já na sua primeira – de muitas – travessuras, Pinóquio faz Geppetto ser
preso, injustamente. Durante sua aventura, ele também será várias vezes detido
pela lei, num exercício de privação e ganho da liberdade que, muitas vezes,
independe da correção de sua conduta. A ambiguidade do estado de direito se
plasma na oscilação entre punição merecida e punição aleatória que rege as
conseqüências dos atos de Pinóquio. Seu caráter questionável, de “malandro
sabido”, como diz o grilo falante (p.130) se popularizou pela ênfase dada na
mentira, principalmente a partir da adaptação animada da Disney. Contudo, os
episódios envolvendo o nariz são pouco incidentais, ocorrendo apenas duas vezes
e sempre relacionadas a lorotas contadas para a sua fada protetora (a primeira
ocorrência surge na página 143)

Aqui, surge
uma série de contradições que moldam o caráter do boneco de madeira. Todos
dizem que um verdadeiro menino gosta de estudar, mas seus colegas de classe são
“verdadeiros meninos” e abominam o estudo (p. 223). Assim, Pinóquio passará por
outros tipo de metamorfoses até entender o que realmente é ser um homem. Transformar-se-á
em cachorro (bestialidade), em enforcado (para aprender a força da morte), etc.
No “país dos folguedos” se transforma em burrico, maldição que assola meninos
preguiçosos e irresponsáveis. E, somente ao realizar a derradeira boa ação de
dar dinheiro para fada necessitada, poderá finalmente se tornar um menino (p.
341).

“Era uma vez...
- Um rei – dirão logo os meus pequenos leitores.
Não meninos, vocês se enganaram. Era uma vez um pedaço de
pau.” (p. 8)
Muito mais do que um livro
infantil, Collodi apresenta um tratado sobre o insignificante, sobre a pobreza,
a fome, o imitativo baixo (como diria Northrop Frye) como ângulo da emergência
da humanização.
Para
concluir, escolho o momento emblemático (além de encantador) em que Pinóquio
encontra Geppetto dentro do peixe-cão e resume-lhe tudo o que lhe aconteceu até
então:
“Imagina que,
no dia em que o senhor, meu pobre pai, vendeu o próprio casaco para me comprar
uma cartilha a fim de eu ir para a escola, eu fugi para ver os fantoches, e o
titereiro me quis botar fogo no fogo para eu lhe cozinhar o carneiro assado,
esse mesmo que me deu depois cinco moedas de ouro para lhe trazer, mas aí
encontrei a Raposa e o Gato, que me levaram para a hospedaria do Camarão
Vermelho, onde comeram com lobos, e eu saí sozinho de noite e encontrei os
assassinos, e se puseram a correr atrás de mim, e eu ia correndo e ia correndo
e eles sempre atrás, e eu correndo até que ne enforcaram num galho daquele
Carvalho Gigante, de onde a bela Menina dos Cabelos Turquesa me mandou tirar
com a carruagem pequenina, e os médicos, quando me examinaram, disseram logo:
‘Se não está morto, é sinal de que ainda está vivo’, e aí acabei soltando uma
mentira e meu nariz começou a crescer que não passava mais pela porta do
quarto, motivo pelo qual fui com a Raposa e o Gato enterrar as quatro moedas de
ouro, pois uma tinha gasto na hospedaria, e o papagaio começou a rir, e
vice-versa; e em vez das duas mil moedas não encontrei mais nada, e quando o
juiz soube que eu tinha sido roubado, de repente mandou-me botar na cadeia,
para dar uma satisfação aos ladrões, de onde ao sair, vi um belo ramo de uvas
num pomar, onde fiquei preso numa armadilha, e o lavrador daquela santa região
me botou uma coleira de cachorro para eu montar guarda do galinheiro, mas
reconhecendo minha inocência me deixou seguir [...]”

COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Autor: Daniel Baz
A arte de levar barata por grilo – Pinóquio, de Winshluss

A história
começa com duas tramas iniciais, a de um barril de material nuclear jogado no
mar e a de um homem que, após observar sua vizinha da janela, decide jogar
roleta russa acompanhado de seu gato. Ambas parecem não ter nada a ver com a
história que conhecemos de Pinóquio. Só parece. Após o fim deste preâmbulo,
somos apresentados aos personagens reformulados do clássico original. Gepeto é
um inventor de armas bélicas, sendo Pinóquio sua nova criação: um robô repleto
de armas e sem nenhuma consciência do certo e do errado (o que o torna muito
semelhante ao menino de madeira do original). Somam-se aos dois a barata Jimmy,
que após ser expulsa de sua moradia decide morar na cabeça do autômato,
servindo de consciência para sua trajetória, a exemplo do que fizera o grilo
falante (mais na adaptação da Disney do que no texto original).

A estrutura
episódica do original é rigorosamente respeitada (ao contrário do que alguns
resenhistas vêm dizendo). Também aqui temos assassinos a espreita em todos os
cantos, também aqui a ganância e a preocupação com o enriquecimento move a
intriga, também aqui o herói é vendido para lucro alheio. Contudo, diferente do
original, este Pinóquio não escolhe nada, não tem opinião, não fala, diferente
do verborrágico boneco original. Neste, o protagonista é uma massa inconsciente
de destruição, manipulada ao gosto dos demais, sendo explorado no trabalho,
enforcado, e saciando o desejo sexual dos demais, o que também favorece as
inúmeras identidades visuais adquiridas pelo álbum.
A sequência
lógica dos acontecimentos segue fidedignamente os ocorridos do trabalho de
Collodi. O peixe cão do original é substituído por um monstro marinho
geneticamente modificado pelo barril da introdução (p. 65). No lugar do teatro de
marionetes, temos Stromboli fabricando brinquedos e empregando Pinóquio em uma
fábrica. Ao invés de fada madrinha, surge aqui a fada da eletricidade (90-91). Mantém-se
do original também a natureza aleatória dos encontros, o cronotropo da estrada
como lugar onde o imprevisível emerge. A imprevisibilidade (inerente também ao
próprio herói) complementa a impossibilidade de sabermos quais histórias irão
se cruzar, a exemplo do contato entre as vidas do policial e da nova versão da
Branca de Neve no desfecho da obra.

Outra forma
de situar a sincronicidade de muitas histórias ocorre por intermédio das
diversas camadas que compõe os quadros ou a passagem entre eles. Um ótimo
exemplo disso é a cena em que o helicóptero de Stromboli cai. Numa perspectiva
distante e em primeiro plano (p. 36), vemos um casal pensar que se trata de um
cometa. As ideologias interpostas também subdividem as temáticas do álbum em
níveis. Basta lembrar que, aqui, Pinóquio é enforcado por não se deixar levar
pelo discurso extremista (remetendo ao nazismo) de um ascendente ditador (p.
83). Mesmo o momento em que o boneco está pendurado por seu pescoço insere
muitas histórias paralelas à sua como pano de fundo.

Na metade do
volume um entrevistador, falando do personagem principal do livro de Jiminy
explica, usando as palavras do inseto autor, que ele é “[...] fruto da união da
minha época e suas mentiras” e segue afirmando: “ ‘Um pensamento em mutação não
encontra espaço nesta sociedade de certezas’” (p. 99). O inseto conjuga o
semema mais amplo da obra original, ou seja, os hábitos mitômatos do boneco, ao
desenvolvimento histórico da narrativa e enfatiza, na segunda citação, o
desenvolvimento morfético de seu herói. Este novo Pinóquio conduz a representação
de um novo tempo em que o imprevisível, o inconsciente, e o aleatório podem sim
se conjugar em um tipo diferenciado de fábula. Uma narrativa por outra. A arte
de levar barata por grilo.
WINSHLUSS. Pinóquio. São Paulo: Globo, 2012.
Autor: Daniel Baz
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