
O romance
começa com Tochtli demonstrando algumas das palavras difíceis que sabe:
sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante. (p. 9). Na lista já há pelo menos
duas constantes que definirão a obra. Primeiramente, demonstra a linguagem natural e constatativa, típica
de dicionário, ainda que utilizada ao narrar situações nada naturais. A segunda constante, deriva da sensação de não
pertencimento, que, se começa com uma linguagem natural para falar de situações
inusitadas, dilui-se por todos os demais aspectos do texto.
Além disso, estas
palavras serão muitas vezes usadas fora do lugar apropriado, como logo na
primeira página, quando Tochtli diz que sua memória é “fulminante”. Dificuldade
em apreender o mundo pelas palavras que, ao fazer emergir sentidos deslocados
de seu uso, denotam a posição também deslocada do herói no mundo. Ainda quanto
a sua linguagem, um dos principais procedimentos utilizados pelo escritor são as
construções paratáticas, isto é, sem conectores que liguem uma frase à outra. Sendo
assim, cada período é uma realidade particular e à parte na obra. Tratam-se de
gestos autônomos que não se conectam no plano da expressão. Este uso erradica
da linguagem as relações de casualidade entre as frases, o que aumenta os
sentidos possíveis e subverte o tema da hereditariedade, central durante todo o
livro. O trabalho interpretativo também é mais enfatizado, pois as lacunas são
muito mais substanciais, o que ajuda a representar a natureza fragmentária da forma
como o menino compreende o mundo. Ao privar a linguagem das estruturas
conectoras, o autor realça sua inconseqüência, sua gratuidade, e explora o
caráter gratuito e alógico também da realidade, ao privá-la dos procedimentos lógicos
de construção.
Outro recurso
particular presente na linguagem do menino são as estruturas de generalização,
seguidas de particularização. Estas são da mesma natureza do fenômeno anterior,
afinal, unem duas realidades, uma macro e outra micro, num jogo de idas e
vindas que representam a situação narrativa. A saber: um contexto amplo e
complexo visto pelos olhos de um indivíduo muito peculiar. Alguns dos exemplos
são:
“E não é só
esse filme que sei de cor, sei muitos outros, quatro.” (p. 12)
“É por isso
que conheço poucas pessoas, treze ou catorze.”(p. 15)
“Eu tenho
muitos chapelões de charro, seis.
(p. 30)
As passagens
que unem tudo que foi dito até aqui são intensas, como no seguinte monólogo
muito esclarecedor de Tochtli: “Na verdade existem muitos jeitos de fazer
cadáveres, mas os mais usados são com os orifícios. Os orifícios são buracos
que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem
orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue
vazar. As balas de revólver fazem orifícios e as facas também podem fazer
orifícios. Se o seu sangue vaza, chega uma hora que o coração ou fígado param
de funcionar. Ou o cérebro também morre. E você morre.”(p.16)
Neste ponto,
o único uso de conexão textual é dado pela coordenação (procedimento que mantém
as frases em autonomia), ou pelo link condicional “se”, que serve como um
conector interno e não entre frases. Contudo, apesar da sintaxe frouxa, a obra
não se furta a produzir analogias que auxiliem a interpretação, como metáforas
muito bem utilizadas, das quais se destaca aquela que utiliza os animais que estão
presos na casa de Youcault, como tigres e leões. Eles simbolizam a ferocidade
latente do lugar, além de também representarem elementos que não deviam estar
ali, seres deslocados, fora de seu habitát natural, como o garoto.
Falamos antes
da relação entre microcosmos e macrocosmos que se conjugam durante todo o
texto. Uma das mais fortes refere-se a uma ideia de nação que pode ser
construída a partir do livro. As próprias contradições pelas quais passam o
garoto podem ser traduzidas como sintomas do terceiro mundo, como fica claro
em: “Parece que a Libéria é um país nefasto. O México também é um país nefasto.
É um país tão nefasto que você não pode conseguir um hipopótamo anão da
Libéria. O nome disso na verdade é ser de terceiro mundo.”
Resta ao fim,
um mundo invertido, ás avessas, que perdeu as referências compartilhadas pelo
consenso, ainda que construído por uma lógica clara e objetiva. “A vantagem da
beira da extinção é que ainda não é a extinção” (p. 52), diz Tochtli em certo
momento. Com frases equilibradas como essa, Villalobos nos ensina o difícil,
mas necessário exercício de concordar com o absurdo.
VILLALOBOS, Juan Pablo. Festa no covil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
Nenhum comentário:
Postar um comentário