A epopeia já foi dada como morta há muitos anos, muito em conta do revival que sofreu no início da modernidade com exemplares como O paraíso perdido, Os Lusíadas, ou A canção de Rolando, e – no caso brasileiro – O Uraguai. Textos que já subvertiam alguns dos elementos originais da forma. Depois de perder o posto de embrião do romance, a partir de uma série de inegáveis pesquisas históricas, o gênero saiu de uso até que Gonçalo Tavares, português que tem prezado pela audácia de seus projetos ficcionais – vide a coleção “O bairro”- voltasse a escrever uma epopeia em bom português em 2010, ou seja, 438 anos depois dos Lusíadas.
Dez cantos que narram uma viagem de um Lisboeta pela Europa (Inglaterra e Paris) até chegar à Índia. Dito assim parece um projeto tradicional e, por isso, anacrônico, mas o resultado é uma inversão paródica do modelo convencional. A começar pelo motivo da viagem. O herói, Bloom, viaja em busca de sabedoria e esquecimento, procura uma mulher para esquecer outra (155). Está também atrás de tédio (48) e seu percurso descreve o paradoxo que só o gênero epopeico poderia criar.
O principal choque ao saber que estamos diante de um exemplar do gênero, refere-se às mudanças técnicas e temáticas empreendidas pela estrutura do texto de Tavares. O que não podemos esquecer é que tais adaptações genéricas são comuns em outros casos de epopeias em língua portuguesa. Começando pelo intertexto mais direto aqui, Os Lusíadas, em que se tem, em alguns episódios, a perda do caráter epopeico clássico. Basta relembrar o relato lírico em primeira pessoa de Adamastor, além do episódio de Inês de Castro, e teremos alguns bons exemplos. Além disso, no Brasil, tem-se o árcade O Uraguai, que investe na modernização do gênero, começando por diminuir sua extensão, além de também investir no caráter lírico de certas passagens – vide a célebre morte de Lindóia.
Os versos metrificados da narrativa, usados para garantir a inalterabilidade do narrador que deve diluir tudo na harmonia do relato, e que pode garantir a solenidade do assunto ou a eloqüência de sua exposição, como no decassílabo, também são abandonados. A livre metrificação explora as múltiplas possibilidades do ser. Os múltiplos ritmos interiores que o indivíduo assume, além de ajudar a construir um dos temas fundamentais da obra: a impossibilidade de resgatar-se a unidade do mundo epopeico. A medida estática dos versos da epopeia tradicional serve também para garantir a inalterabilidade da narração e do mundo narrado, algo que não ocorre aqui.
Afinal, outro fenômeno estranho ao gênero, refere-se justamente à aquisição de um espaço para a voz narrativa, que aqui não só se manifesta como uma entidade ativa (como na tradição de Tristam Shandy), mas também é uma entidade detentora de “um projeto pessoal cheio de perversões” (319). Daqui resulta uma tensão evidente entre o “organismo interior” que é Bloom e a voz que lhe narra. O livro possui, em muitos trechos, um caráter aforismático decorrente disso, o que envolve as situações particulares do herói com uma série de postulados morais, éticos e filosóficos que o circundam. Mais do que isso, a instância narrativa aposta na ênfase na forma, isto é, em como a história é contada, num andamento digressivo e metanarrativo que só diminui a importância da fábula.
O tempo é outra subversão à parte. Diferente dos relatos tradicionais, na epopeia de Bloom o passado é fundamental na disposição anímica do herói. Sua transformação é antes interna. “Quero primeiro chegar à Índia por dentro” (228), diz ele, e, diferente do herói clássico, sua dimensão interior e a mudança de seu temperamento estão intimamente relacionadas à passagem do tempo. Auerbach, por exemplo, no seminal Mimesis afirma que a ausência de interioridade, de sentido temporal, e de campos semânticos obscuros caracteriza a épica homérica. Além disso, os personagens desta experimentam fenômenos que ficam apenas no plano sensorial. Aqui também Bloom subverte traços característicos do gênero. O herói português carrega uma angústia individual que o distancia dos demais homens e ela só existe na experiência qualitativamente distinta do tempo e do espaço. O homem é o que é porque foi um outro em algum momento. Bloom não é exclusivamente presente, como Aquiles, mas vive inclinado para o que será e condicionado pelo que já fez.
Quando finalmente volta da Índia, a única prova de que lá esteve é uma edição do Mahabharata, epopeia que narra os feitos da dinastia dos Pândavas. A partir de sua história representa-se a essência do povo hindu e explora-se a harmonia entre o plano divino e o mundano. Mas no retorno, a epopeia de Bloom já é outra:
“Não procurou proezas extraordinárias,
Porque viveu o suficiente para perceber
As várias epopéias que existem
Num só dia de Inverno onde o tédio
E o frio empurram levemente o homem para a janela.
Imobilidade como epopéia ínfima,
Eis o que descobriu já depois de estar cansado.” (434)
O que não deixa de representar uma geração de homens contemporâneos como fica claro no trecho:
“E a minha vida é apenas uma especialização
do continente onde fui infantil e adulto –
disse Bloom”
A lógica capitalista amolda a postura alienada de Bloom e mesmo a alegoria cultural que se pode extrair dele insere-se no plano das especializações. Além da epopeia hindu, Bloom também carrega um rádio que pertenceu a seu pai. A cosmovisão de mundo comunitária e a individual em intenso conflito a partir daquilo que o herói carrega.
O livro termina com um irônico apêndice intitulado “Melancolia contemporânea: um itinerário”, onde tenta-se definir a trajetória de Bloom a partir de palavras-chave como “coragem”, “medo”, “cidade”, etc. Mas a multiplicidade de termos sinaliza contra a possibilidade de organizar a experiência do protagonista. Diferente do Ulisses, de Joyce, o itinerário não estrutura a fábula, mas a desintegra. A viagem epopeica do herói contemporâneo começa abandonando a confiança nos mapas.
TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia. São Paulo: Leya, 2010.
Autor do Texto: Daniel Baz dos Santos
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