domingo, 30 de março de 2014

A solução da América Latina é a abdução (mas nos contentamos com o insulto)



“A coincidência é prima-irmã da confusão,
essas duas safadas se beneficiam
do caos, do bendito caos.”

Já falamos aqui no Pato Fáustico do romance anterior de Juan Pablo Villalobos. Sua estreia como romancista ocorre em Festa no covil, livro que conta a história do filho de um narcotraficante que interage com um mundo tão absurdo quanto sua singular condição. Dessa vez, em Se vivêssemos em um lugar normal, livro segundo de uma trilogia iniciada na obra anterior, o autor decide contar sua história por intermédio da primeira pessoa do adolescente Orestes, segundo filho de uma família pobre (mas, segundo a mãe, de classe-média) com nove bocas para alimentar (sete filhos, pai e mãe). A perspectiva escolhida traz ecos da obra anterior, uma vez que os mais jovens têm, novamente, que amadurecer precocemente para lidar com a realidade: “As crianças já estão grandes e conseguem saber o que é errado.” (p. 21), diz o pai para a mãe, após ensinar os filhos que a polícia serve “para matar todo mundo”(p. 22)


A vida familiar contextualiza todos os acontecimentos da obra e, logo no início do livro, após perder dois irmãos em um mercado, alegoria para a selvageria do consumo que também acompanha toda a trama, Orestes chega à conclusão de que, quanto menos familiares, melhor a situação econômica dos parentes. Estes insights político-econômicos, surgidos de carências pessoais e não de consciência ideológica adquirida, são o subtexto mais forte relacionado aos absurdos vividos pelo protagonista, que podem incluir um controle remoto mágico e naves alienígenas. Estas pílulas fragmentadas de consciência social são reveladas, geralmente, a partir do humor e ironia que percorrem toda a narrativa. Em certo ponto, por exemplo, o narrador revela, após a diminuição dos alimentos nas refeições: “Entramos em uma fase de racionamento das quesadillas que terminou por radicalizar as posturas políticas de todos os membros da família.” (p. 15). Em outro momento, o herói diz:

“Minhas visitas à casa de Jarek foram um poço sem fundo de preocupações para minha mãe, que temia que eu executasse estragos como em casa, o que nos endividaria com os vizinhos em proporção similar à da dívida externa do país” (p. 53)

Esta comicidade corrosiva é, primeiramente, uma forma de lidar com a História, mas também permite o olhar distanciado de um personagem cuja postura subversiva, desde a primeira frase do romance, se comunica por intermédio do choque e do insulto: “ – Vai tomar no cu duma vez seu filho da puta! Vai à merda.” (. 9)

Durante seu percurso, Orestes se desvincula dos familiares, rompe (mais uma vez, de forma violenta) com o irmão e segue uma jornada pessoal de ida e retorno, adaptando-se, numa tentativa frustrada de melhorar de vida. Nesse sentido, o personagem resgata a tradição “picaresca” em que se atrofia a noção tradicional do último tipo de herói clássico (o arturiano), por intermédio de um anti-herói extremamente individualista, preocupado exclusivamente com seus projetos pessoais. Geralmente, este tipo de “caráter” serve para desmascarar um sistema social bilateral que, ou aliena o herói, ou o condiciona a uma existência nada emancipadora. O motivo mais emblemático desta situação refere-se ao projeto de desalojamento da família de Orestes para a construção do Residencial El Olimpo, fruto do imaginário utópico burguês da pós-modernidade que conjuga conforto com absurdas transações mercadológicas. Além disso, é evidente a paródia da tradição clássica helênica, já explícita no nome do protagonista.


A revolta do herói se converterá justamente na recusa do discurso medido e equilibrado, o que provoca sua oratória agressiva. A retórica epidítica, repleta de censura a seres e instituições, é a mobilização do caráter de Orestes e de seus pares. Como ele mesmo explica no início do romance, após a primeira frase já citada aqui:

“Sei que não é uma maneira adequada de começar mas a minha história e a história da minha família estão cheias de insultos” (p. 9). Ora, o modelo familiar de Orestes é projetado em tudo que o circunda. Mesmo as comunidades nômades que ele encontra ao fugir de casa e romper com o irmão continuam este modelo:

“Em cada cidade, sempre no segundo dia um contingente de esfarrapados me examinava. Eles ficavam me observando sem eu perceber, e nisso levavam vantagem, conheciam as ruas e os becos de cor, e percebiam qualquer anomalia com muita rapidez. O líder sempre era o mais velho, a rua reproduzia o modelo familiar.” (p. 81).

O silogismo é fácil: a família é um microcosmo de todos os espaços, ou seja, é a pátria. Contudo, o insulto e as grosserias vulgares não são simplesmente uma forma de lidar com/representar as injustiças sociais e as mazelas da terra, mas são elas mesmas a lógica de uma sociedade em permanente crise. E, de forma ainda mais cruel, podem se converter à representação das práticas de violência cometidas pelo estado contra as populações, manifestada plenamente por uma linguagem na defensiva, simulando réplicas de uma ofensa original sofrida no fiat lux da cultura periférica.
Quando Orestes percebe que é o irmão mais velho em casa, a sua atitude é emblemática de uma alma subordinada, acuada e sedenta de poder, já que seu lema contra os irmãos se torna: “Vocês não sabem de nada, seus idiotas” (p. 98). Ainda que clichê, o exercício de domínio se estabelece pela afirmação da ignorância dos dominados. Felizmente, fugindo das soluções fáceis, o livro abandona um pouco o excesso de referenciais sociais e históricos para promover um interessante “desacato à realidade” que envolve os OVNIs citados anteriormente. A ficção faz sua curva característica (a coincidência do caos, como dito na epígrafe) ao fim do romance e se sustenta mais pelo estranhamento do que por paradigmas prévios estabelecidos, o que favorece seu ideal semianárquico e subversivo, seguindo a linha de Festa no Covil. Agora, se a solução para o subdesenvolvimento é a abdução, fica difícil afirmar. Por enquanto, nos contentamos com a força responsiva do insulto.
Autor: Daniel Baz

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Ação e cor em Piteco: Ingá, de Shiko





Piteco: Ingá é o último álbum lançado pelo impecável projeto Graphic Msp, coordenado por Sidney Gusman. Nele, o excepcional artista paraibano Shiko adapta a história de Piteco e seus companheiros, Beleléu, Ogra e Thuga mediante uma narração mítica a respeito do nordeste. Com este inutito, o quadrinista parte das inscrições esculpidas na Pedra do Ingá, misterioso monumento arqueológico no agreste da Paraíba.
A história começa mostrando os símbolos da pedra, enquanto os recordatórios contam a origem do povo de Lem. Estes são, na verdade, o relato oral de um de seus sábios, que ensina a tradição aos seus conterrâneos em uma página dupla funcional ao enaltecer o espírito comunitário do local. A transição é genial, pois partimos dos signos da pedra, que não evocariam sentido algum se vistos de forma autônoma, apenas para entender sua real dimensão dentro da comunidade apresentada a seguir. Ao se referir ao espaço-tempo mítico, por intermédio deste personagem, Shiko está legitimando a estrutura de sua obra, visto que ela estabelece uma origem para o povo nordestino. A aventura tem início com o êxodo do povo de Lem, que deve se mudar por causa da seca e cuja jornada já é prevista pelas inscrições ancestrais. Em paralelo, Thuga, a sacerdotisa deste povo, é raptada pelos homens-tigre, o que obriga Piteco, seu amigo Beleléu e, logo depois, Ogra, a partirem em busca dela.
Na caracterização dos personagens, Shiko já revela o domínio gráfico que possui. Na primeira aparição de Piteco, por exemplo, ele aparece imponente em um plano americano frontal, mas levemente inclinado e com os braços caídos ao lado do corpo. Isso garante nossa simpatia imediata, já que revela humanidade e a bidimensionalidade que um herói complexo necessita. Além disso, a postura do herói aqui complementa a pose mais agressiva em que ele aparece em uma das capas internas da obra. Beleléu, por sua vez, é desenhado desengonçado e de olhos arregalados (p. 16), enquanto Ogra surge mal encarada, armada e com a mandíbula projetada para frente. Thuga, no entanto, é desenhada com certa sensualidade, vista geralmente de perfil ou de costas, o que prenuncia sua evasão logo no início da trama.

O ritmo da narrativa também é excelente. Shiko tem de lidar com a técnica da montagem paralela, pois o enredo se divide entre os raptores de Thuga e o grupo que segue em seu encalço. Isso é importante, visto que a busca de Piteco é a afirmação de sua individualidade, pois ele está disposto a contrariar as escrituras para mudar o destino e recuperar sua amada. Isso é representado magistralmente na cena em que o herói parte com Beleléu em outra direção que não a dos retirantes (p. 19). No momento em que aborda o êxodo de Lem, aliás, Shiko retoma os padrões utilizados para retratar a realidade “sertaneja” na adaptação que ele fez para O quinze, de Raquel de Queiroz. Principalmente em certo uso das cores, a respeito do qual falarei a seguir.
Em certos trechos (p. 14, 20, 42), quadros mais largos, horizontais, colaboram com o andamento suspenso do tempo. Na extensão ampla destas cenas mora o espaço futuro a ser explorado. Em dados momentos, este mesmo recurso pode tornar a perseguição mais tensa (p. 44), ou enfatizar as habilidades de combate de um personagem, ao situar, de uma só vez, muitos inimigos ao redor de um único herói (p. 29-30). Nas cenas iniciais de diálogo (p. 18), ou em pausas ao longo da trajetória (p. 32), vários quadros menores identificam os personagens que parlamentam, aprisionando-os em requadros pequenos que combinam com o sentimento de insegurança e separação que vivenciam. Por isso que, quando Piteco revela que Beleléu irá com ele, dois quadros formam uma mesma imagem em que o caçador enlaça seu amigo com o braço. O grupo ainda está cindido, mas o clima de união está presente. 




Entre outros acertos do quadrinista, destaca-se o ponto onde as Aves do terror chegam, no qual as onomatopeias se confundem com as árvores, num indício gráfico do som tomando tudo ao redor (p. 39). Ao retratar as criaturas fantásticas, Shiko as obriga a romper com a quarta parede, já que o ímpeto e seu tamanho descomunal exigem que elas saiam do quadro (p. 48-49). Este recurso vem associado com a coloração do álbum, também feita por Shiko, e, ao lado da adaptação O mágico de Oz, já analisada neste blog, e das aventuras da Batwoman dos Novos 52, é o melhor uso de cores que vi em quadrinhos em 2013. O artista usa aquarela e, fazendo isso, atualiza alguns elementos importantes da teoria das cores.
John Ruskin explicou certa vez que, enquanto a forma é absoluta, a cor é relativa, ou seja, está livre das convenções estruturais que identificamos nos objetos. Além disso, a cor dentro do desenho é uma metonímia, parte significativa de um todo semântico, geralmente social/psicologicamente orientado. A teoria da cor, em muitas de suas manifestações teóricas e em obras paradigmáticas da metade do século XX em diante, insiste na impossibilidade de haver um equivalente verbal para a sensação colorida, reflexão que pode ser vista na obra de artistas como Bruce Nauman, Joseph Kosuth e até mesmo em certas passagens de Em busca do tempo perdido. Contudo, em 1954, Pierre Francastel afirmou que a cor é uma testemunha das concepções dos seres humanos a respeito do ambiente em que vivem. Além disso, desde os impressionistas (e antes deles, em Goethe) a cor passou a ser a matéria inicial da pintura moderna, cuja autonomia foi defendida por nomes do porte de Cézanne, Gauguin e Matisse (cada um com seus interesses em particular). Em Ingá, a coloração é uma forma de lidar com o nordeste na sua polivalência mítica e folclórica, que é narrada aqui por intermédio de uma paleta variada. 

Neste trabalho de Shiko a cor é uma forma de eloquência, que carrega uma ética essencialmente etnológica, mas que se redefine em algo novo, criado pela atuação da cor em nosso imaginário. Como disse certa vez Bachelard, “Diante de tal produção de uma nova matéria, que reencontra por uma espécie de milagre as forças colorantes, cessam os debates sobre o figurativo e o não-figurativo. As coisas não são mais apenas pintadas e desenhadas. Elas nascem coloridas, nascem pela ação mesma da cor” (p. 27).
A cor, pensando na estética de Guatarri, também pode ser uma forma de objetivar conceitos a partir dos fenômenos artísticos. As cores terrosas marcam os diaspóricos personagens de Lem (p. 19), estratégia já utilizada por Shiko em O quinze, onde a mesma paleta representa a influência telúrica sobre os personagens. Na primeira cena em que vemos o povo de Lem ouvindo a história de sua origem, o vermelho e o laranja nas tochas que alguns seguram é a manifestação material do poder transformador e da energia do grupo que irá empreender a viagem. E não é à toa que, na última cena antes do rapto de Thuga, uma chama minguando seja mostrada (p. 13). Mais do que isso, na última cena do álbum, duas fogueiras zelam o futuro promissor do casal. A cor é material e sensação, envolvendo-nos nos afetos da trama. O mesmo amarelo consome o tigre gigante que surge ao final do enredo. O amarelo da impressionante criatura, desenhada em página inteira (p. 66), se filia à tradição dos amarelos de Van Gogh, visto nos girassóis expostos por ele em 1888. Ela está encarnada em nossa experiência pregressa e passa por uma rearticulação que ameaça o eu do leitor. Curto-circuita o sujeito, como todo bom uso da coloração pode fazer, já que ela é sempre transcendente, ainda que se relacione com objetos estabelecidos em nosso imaginário. Ela escapa da forma, mas permite que reconstituamos aparatos formais antes vistos por nós. Por exemplo, quando o tigre surge, o amarelo não está só. Ele dialoga com o vermelho de sua própria ameaça, o vermelho que marca o chão, mas que também compõe as roupas de Piteco e do “vilão” ao fim. Assim, a cor ajuda a afixar uma experiência na memória para, a qualquer momento, subvertê-la.




Uma cor bem empregada fortalece nossa potência de ver. E nos envolve por ser sempre fugaz e instável.  Isso Shiko explora com as formas, seja na quebra da quarta parede mencionada anteriormente, seja na natureza mística dos seres apresentados. Um evento cromático é uma forma de atenção, cria um campo da atuação do ser na obra. O requadro não pode conter a cor, Shiko sabe disso. Veja-se o vermelho na página 57. O azul do céu servirá de contraste com a coloração avermelhada do Anahaguera, como que nos lembrando que a natureza não é apenas harmonia. O próprio tigre varia (68-69) em função da luz, pois a cor é uma dos fenômenos onde melhor incide o movimento da percepção para a representação, cabendo à imaginação unir a sensação ao conhecimento de mundo, seja ele criativo ou simplesmente imitativo (algo feito muito hoje em dia pela moda e pela publicidade).
É com este repertório genial que Shiko dá novo fôlego a um dos mais conhecidos personagens de Maurício de Souza, produzindo, no percurso, um mito de fundação do nordeste e do espaço latino-americano como um todo. Ao terminar de ler Piteco: Ingá tem-se a sensação de que um artista maduro se estabelece entre nós. Solidário com seus novos fãs, Shiko publicou em paralelo o quadrinho independente O azul indiferente do céu. Em breve, analisarei ele aqui no Pato, mas já adianto que, assim como esta aventura pré-histórica, é uma das melhores coisas lançadas no Brasil em 2013.

Autor: Daniel Baz

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O devaneio de Neil Gaiman: realidade, sonho e potência de agir





2013 foi um ano bom para os fãs de Neil Gaiman no Brasil. De memória, consigo lembrar-me do lançamento de Orquídea Negra, Dias da meia-noite, Batman: o que aconteceu ao cavaleiro das trevas, e, principalmente, o lançamento em capa dura das quatro primeiras edições de Os livros da magia (1990), clássica história escrita pelo inglês e ilustrada por quatro mestres do desenho: John Bolton, Scott Hampton, Charles Vess, e Paul Johnson. Além destes, outro lançamento de peso chamou a atenção para o criador de Sandman. Trata-se de seu último romance, O oceano no fim do caminho. A leitura destes dois últimos trabalhos (que, inicialmente, seriam analisados aqui no Pato Fáustico em resenhas distintas), levou-me a resgatar anotações antigas a respeito do escritor, cuja consequência será uma tentativa de sistematização de algumas características de sua obra. Tive que confiar na memória e esta é um terreno tão movediço quanto os enredos criados por Gaiman, por isso, seguem-se inúmeras citações “de cabeça”. Espero, portanto, a predisposição dos leitores para o diálogo posterior, esta sendo a verdadeira intenção dos textos deste blog.

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No clássico e delicioso Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino sugere uma série de “valores”, “qualidades” ou “especificidades” (p. 11) que deveriam ser perseguidos pelos futuros escritores. De todos os itens abordados, os dois primeiros, “leveza” e “rapidez”, parecem ter-se tornado profissão de fé na obra de Gaiman. Comecemos considerando os dois lançamentos mais importantes do ano passado. Em Os livros da magia, somos apresentados ao menino de doze anos, Tim Hunter, que está destinado a ser o maior mago da história. Quatro poderosos seres do universo DC, Vingador Fantasma, Dr. Oculto, Mr Io e John Constantine, decidem então apresentar a “magia” para o garoto. Na companhia do invejável quarteto, Tim irá conhecer o passado, o presente, o futuro, e os reinos vizinhos, universos onde a magia impera e que só podem ser percorridos por poderosos feiticeiros.
Já em O oceano no fim do caminho, uma fábula aparentemente mais simples que os demais “livros de adulto” que Gaiman escreveu, o narrador (não nomeado) relembra uma série de eventos passados quando tinha apenas sete anos. Após a morte de um inquilino de sua família (que matara seu gatinho), o pequeno protagonista passa a ser atormentado por um espírito ancestral, a pulga, que assume a forma de mulher e passa a seduzir o seu pai. Logo, encontra Lettie Hempstock, mais nova membro de uma família ligada à magia e que irá ajudá-lo contra o inesperado mal, na mesma medida em que o introduz no mundo das entidades místicas. 


Muitas das características que marcam a obra de Gaiman podem ser percebidas nestas duas histórias. Começando pelos protagonistas ainda imaturos que, ao conhecer um terreno que extrapola a realidade comum, formam seu caráter. A magia é, usualmente, uma metáfora para o aprendizado em Gaiman e, principalmente nas duas obras mencionadas, torna-se uma forte analogia para a potência transformadora, alquímica mesmo, da juventude. O mágico é sempre resultado de determinada tutoria em seus trabalhos e, por isso, é frequentemente um problema de formação. Uma personagem diz para Richard, em Lugar nenhum, quando percebe que ele não conhece a Londres fantástica na qual acaba de ser inserido: “[..] mas que mente fantástica você tem meu jovem. Nada como a ignorância, não é mesmo?” (p. 127), trecho em que a jovialidade do personagem é emblematicamente ressaltada. Se a magia é primordialmente instrução, traçando um silogismo inverso, o conhecimento também é essencialmente mágico para Gaiman. Partindo desse tópico, poderíamos traçar vários paralelos entre outros pontos de contato no imaginário desenvolvido pela obra do britânico, desde as personagens femininas fortes e surpreendentes (em O oceano no fim do caminho, por exemplo, revemos três velhas conhecidas), passando pelas moedas que surgem inesperadamente, pela ambiguidade de certas figuras centrais, etc, etc.
Contudo, para incluir estas duas obras no que pretende ser um texto panorâmico é necessário unir os dois ideias presentes na obra supracitada de Italo Calvino com a própria natureza ficcional e narrativa dos textos de Gaiman, projeto no qual a ideia de devaneio, articulada por Gaston Bachelard, tem vital importância. O autor francês é, primeiramente, importante na sua preocupação epistemológica com o novo espírito científico (semelhante ao imaginário produzido por Gaiman), ocupado com a relatividade de Einstein, com a física quântica e com a geometria não euclidiana, cujos traços românticos tornam sua filosofia essencialmente transgressora e indomável. Além disso, ele se coaduna com a imaginação material presente em toda a obra de Gaiman, passando pelos seus trabalhos iniciais na DC (sua primeira história com o Monstro do pântano começa com a evocação dos quatro elementos, por exemplo), chegando ao imaginário aquático que permeia O oceano no fim do caminho.


Contudo, a “sólida constância” da monotonia material é revigorada com o espírito aventuresco leve e rápido (pensando sempre com Calvino) das histórias do autor. Afinal, nas histórias de Gaiman tudo é movimento. Tim Hunter, no primeiro quadro que aparece em Os livros da magia, está no meio de uma veloz corrida em seu skate, imagem análoga à viagem movimentada que realizará nos quatro volumes da obra. Personagens como Shadow, de Deuses americanos, e Fat Charlie, de Os filhos de Anansi, saem de situações de estabilidade (prisão, rotina empresarial) para imergir em um mundo em constante transformação. Coraline, por seu turno, já começa com a ideia de mudança para uma vida diferente na casa nova, representada, essencialmente, pela porta misteriosa que a garota descobre na primeira frase do romance (p. 6). Lugar nenhum, por sua vez, começa da seguinte forma: “Richard Mayhew não estava se divertindo muito na noite anterior à sua viagem para Londres.”, informação que deixa o leitor do romancista inglês já de sobreaviso para a mudança e a movimentação prestes a acontecer.
Além disso, nesse mesmo romance há um trecho representativo da gramática narrativa de Gaiman, que aposta na dinâmica e na mobilidade dos motivos da trama, como metáfora estrutural de suas zonas semânticas mais importantes: “Richard havia percebido que os acontecimentos são seres covardes. Eles nunca acontecem sozinhos: vêm numa matilha, pulando juntos sobre alguém ao mesmo tempo.” (p. 16). Já o narrador de “Um estudo em esmeralda”, primeiro conto de Coisas frágeis, admite: “No entanto, já comecei esta narrativa, e receio que seja preciso continuar.” (p. 18). Sonho, por sua vez, se torna abatido depois que recupera seus objetos e não tem mais para onde ir nas primeiras histórias de Sandman. Enfim, o movimento é a condição de existência das fábulas do autor e o tempo é o principal evocador do drama de sua narrativa (nesse sentido, Gaiman é um seguidor de Lovecraft). Seu habitat é a transição, por isso a narração deve ser leve e ligeira. Por causa disso também, o autor não pode escapar de certas imagens, a exemplo de contos como “A vez de outubro”, no qual o tempo é antropomorfizado, confissão explícita de que o escritor está consciente da versatilidade da categoria temporal como protagonista das narrativas que inventa. O conto funciona de forma irônica, pois, apesar de não irem a lugar algum durante o enredo, os doze meses se ocupam, como atitude compensatória, em contar histórias.
É evidente que essa constante transformação a que o enredo está submetido tem a intenção de ser análoga ao estranhamento que a maioria dos personagens de Gaiman sente, conforme se acostumam com o mundo ao redor e com o fantástico que dele irrompe. Veja-se este trecho de Deuses Americanos: “A jukebox começou a tocar ‘Who loves the sun’, do Velvet underground. Shadow achou que era uma música estranha e bem improvável para estar em uma jukebox. Mas e daí? Aquela noite estivera mesmo cheia de coisas cada vez mais improváveis.” (p. 40). O “estranho” esbarra paulatinamente na percepção ainda condicionada pela qual o herói vê o mundo, numa pedagogia que o próprio narrador exerce ao lado dos “tutores”, personagens presentes na maior parte das obras de Gaiman, e que acostumam seus discípulos com os novos mundos a serem desbravados, como fica evidente no seguinte momento de Lugar Comum: “Richard foi, e percebeu que a pergunta “Que biblioteca?” não tinha saído de sua boca. Quanto mais tempo passava ali, menos ele achava tudo estranho” (p. 145). Obviamente, aqui estamos tateando a ideia de “hesitação” que marca a teoria do fantástico mais célebre no ocidente, ou seja, a de Todorov, mas devemos voltar a este ponto ao fim deste artigo.
Até mesmo em “O que aconteceu ao cavaleiro das trevas”, no qual Gaiman trabalha com o universo do vigilante noturno mais famoso da DC, o roteiro capta o universo por intermédio de seu efeito “estranhador” e sua potência mórfica: “Onde estou? Aqui mesmo em Gothan. Estou sonhando? Não. Não está sonhando. Aqui é Gothan. Digo, sei que é Gothan, mas está... estranha. Conheço Gothan como a mim mesmo. Conheço esta viela. Mas não está certa...” (p. 11). O trecho também é emblemático de duas outras características das narrativas de Gaiman, ou seja, o estranhamento do mundo é correlato ao sentimento desajustado do herói e pode ser equacionado por intermédio do sonho. Todos os personagens do autor sonham muito, ponto que será investigado, de forma sumária, a seguir. Resta salientar, contudo, que o caráter cambiante da realidade é explorado nesta história sobre o Batman de forma genial, pois após sermos apresentados ao funeral do homem-morcego ouvimos versões de sua vida, contadas por seus vilões e amigos de longa data, em uma espécie de “Rashomon do Halloween”. Tratamento cubista que é usado também nas várias realidades, expressas pelos vários artistas, de Os livros da magia.
Tudo isso se vincula à tradição fabular oral dos textos de Gaiman, cujas histórias sempre operam uma luta contra o próprio tempo, em que cada objeto pertence a uma rede de conexões que, somente no futuro (narrativo e temático), poderá ter sentido completo. Sinal e ruído é certamente uma fábula que parte da tematização desta que é uma força maior nas obras de Gaiman, ou seja, a fatalidade como estruturante do texto. Nela, um cineasta consciente da morte iminente alonga o tempo viabilizando um novo devaneio-filme sobre um hipotético fim do mundo ocorrido no passado. O herói se pergunta, em dado momento, porque escreve um filme que não terá tempo de filmar e eu me atrevo a responder, pois somente a narrativa pode dar forma a um sentido palpável desse tempo. Nesse sentido, Gaiman é ricoueriano ao extremo. Isso fica claro ao fim da história quando, ao morrer, o herói se transfigura em personagem de seu próprio filme e avisa que nada irá acontecer aos aldeões que esperavam o fim “ficcional” do mundo. É oportuno dizer, neste ponto, que a própria ideia da morte em Gaiman quase nunca é conclusiva, mas é ela mesma um potencial transformador. Em Sinal e ruído, portanto, o leiaute se diverte oscilando entre páginas repletas de quadros e painéis mais longos, explorando o ritmo inconstante e imprevisível ao qual seu herói está submetido, tateando a forma melhor de ordená-lo. Essa estratégia estará presente também em Os livros da magia. A fatalidade e sua força ordenadora estão presentes ainda nas inúmeras profecias espalhadas em muitos dos textos do autor e que, como é costumeiro, revelam apenas parcialmente o futuro dos heróis, o que sugere certa subordinação da própria ideia de destino à lógica narrativa.
Nesse mesmo sentido, percebemos que o autor adora dar coisas aos seus personagens que, no ato mesmo da dádiva, não têm nenhuma função de existir. Esta dependência do futuro é ela mesma um signo de movimentação ininterrupta que marca seus livros, correspondendo a um sistema simbólico de trocas e perdas, duelos e barganhas, que mexem com as propriedades dos objetos e do mundo. São os “objetos inesgotáveis”, típicos do devaneio e sua potência operante. O dinamismo é o hábito primitivo que insufla força no narrado e na forma de narrar.  Tim Hunter ganha um ovo sem função aparente, Shadow ganha uma moeda sem utilidade presente, a chave carregada por Richard não tem uso, o colar de Tristam Thorn idem, e mesmo os objetos perseguidos por Sonho em “Prelúdios e Noturnos”, primeiro arco de Sandman, parecem compor menos uma obtenção presente e palpável do que um aglomerado de possibilidades futuras. Isso se relaciona também com a força dos nomes e apelidos no mundo de Gaiman (Door abre portas, Nancy é o deus Anansi, os nomes das ruas de Londres podem ser literalmente interpretadas, etc.); isso ocorre porque são todos eles um índice imóvel em um universo repleto de imprevisibilidade e inconstância. O gato diz para Coraline, quando ela se apresenta, “Agora, vocês pessoas têm nomes. Isso é porque vocês não sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto não precisamos de nomes.” (p. 38) (interessante notar, contudo que o nome de “Coraline” sugere a movimentação das letras dentro do nome, comumente confundido por outros personagens que a chamam de “Caroline”).
Essa mobilidade é positiva e vem frequentemente associada à infância ou juventude. “Quanto mais velho eu fico, menos gosto de viajar”, diz o narrador do conto “Lembranças e tesouro”. Ao passo que outros personagens, como o narrador de O teatro da meia-noite de Sandman, história na qual Neil Gaiman une o universo de seu personagem com o herói clássico da DC, diz: “Sempre fui bom viajante”. Com relação à infância, ela geralmente vem associada à infinita potência criativa, à própria aurora do mundo e das crenças que o sustentam, como fica claro no narrador de Mr. Punch: “Quando eu tinha quatro anos, acreditava em tudo, aceitava tudo e não tinha medo de nada.”. Além disso, a figura da criança serve à Gaiman para que ele possa escapar do famoso momento de vacilação que marca a teoria do fantástico, a criança simplesmente aceita e investe em direção ao novo: “Não quero fazer nada disso. Quero explorar.”, diz Coraline no começo de sua aventura (p. 9), quando se ressente de não ter nada para fazer. Rapidamente, uma porta que “não dá em lugar nenhum” ofende não só a menina, mas também a própria consciência narrativa do leitor de Gaiman, pois sabemos que todo umbral deve ser passível de transposição. Algo semelhante ocorre no início de Stardust, quando o narrador menciona a brecha que permite a passagem para Wall, mas que deve ser protegida da curiosidade das crianças. Na mesma linha, diz Adam Young, o menino indagador, em Belas Maldições: “Por que a gente tem que aprender coisas chatas quando tem tanta coisa fantástica que podíamos estar aprendendo, é isso o que eu quero saber.” (p. 155). Da mesma forma, em certa passagem de Fumaças e espelhos, o autor brinca que sua profissão não é adequada para um adulto, unindo a infância com a própria vontade de narrar.
A narrativa ela mesma é um meio de transporte (para usar outra imagem de Calvino, quando ele fala da rapidez), pois ela discorre e corre, ao mesmo tempo, para alcançar sua meta. Por isso que são raras as digressões em Gaiman e, quando elas surgem, podem vir na forma de um sonho, ou durante uma cena de ação propriamente dita, ou seja, conectadas com o devir imediato da ação dos personagens. As obras de Gaiman relatam um cosmodrama (no neologismo de Bachelard), no qual o homem sempre pode sonhar em deter as rédeas do universo e acompanham personagens como Shadow, Tristan, Tim e Coraline, que, efetivamente, as detém. Isso explica também a obtenção de objetos especiais em muitas das narrativas do autor. Eles materializam as forças obscuras da existência e podem ser retidos e úteis à vontade humana. Além disso, eles representam o capricho de uma narrativa que se sabe planejada, montada a partir do próprio devir. Sendo assim, em certos momentos, como no conto em que Gaiman “concerta” o destino de Susan das Crônicas de Nárnia, o próprio ato narrativo é uma reorganização e demonstração de domínio sobre os universos conhecidos por nós e das hipóteses para seu futuro. Seguindo esta linha, o conto “Presente de casamento”, de Fumaças e espelhos, é uma demonstração genial da força da narração na obra do romancista inglês (na verdade, uma brincadeira narrativa que investiga os limites entre ficção e sua função pragmática e que deve ser melhor investigada em outra ocasião). Um casal recebe de presente de casamento um envelope no qual é contado uma história paralela na qual as consequências das bodas são terríveis. Regularmente, a descrição hipotética atualiza uma série de tragédias e tristezas que não são vividas pelo par principal. A mulher retira o papel do arquivo para a gaveta de joias, indício de que a monumentalização passa a substituir a documentalização do texto recebido, e começa a se questionar se sua vida verdadeira não seria essa relatada nos papéis, pois a sua era perfeita demais para ser “real”. A lição da história permite-nos concluir que, mesmo quando as coisas vão bem, há um princípio de realidade que deseja consumir tudo em Gaiman.
Por esta via, a organização dos mundos do criador de Sandman convida à ação, convoca o homem para que dome as forças desordenadas do mundo que o cerca. Todo enredo de Gaiman envolve certa dimensão de estruturação do cosmos. É por isso que a realidade é tão ambivalente em suas obras, pois apesar de seus personagens se desvincularem de seus padrões convencionais, caso queiram aprender como o mundo efetivamente é, o real é sempre uma força presente e estável. Por um lado, por causa das zonas de referência que se relacionam com as convenções do real e, por outro, e mais importante, porque a realidade é o fenômeno mais regenerativo em Neil Gaiman. Trechos como o seguinte de Lugar comum percorrem toda a obra do inglês: “E tudo voltou ao normal. Os convidados, os guardas e os garçons piscaram, balançaram a cabeça e, depois de terem presenciado algo sobrenatural, concordaram, de modo intuitivo que aquilo nunca acontecera. O quarteto de coras começou a tocar” (p. 176). Aliás, é nesse romance que a onipresença do real em muitas cenas, mas especialmente no fim, é sentido de forma mais traumática. A cena inicial de Orquídea negra funciona da mesma forma, quando uma típica fantasia super-heróica se transforma em um ato de violência muito próximo dos vivenciados no mundo convencional, estratégia que consagrou a história como um marco em sua época. Por sua vez, contos como Golias, escrito para o universo de Matrix, começa com este tipo de questionamento: “Acho que posso afirmar sempre ter suspeitado que o mundo fosse uma farsa barata e tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade.” (p. 95). O texto funciona de maneira semelhante no início de Stardust, história que se inicia com alguns parágrafos extremamente fabulares, admitindo o caráter fictício da narrativa, mas que logo se entrega à estratégia mais característica do discurso realista (poucas vezes vista em Gaiman): uma longa descrição de Wall e seus arredores.
Em Belas maldições, há outro trecho que demonstra de forma complementar a consciência do narrador desse fenômeno:

“Madame Tracy rompeu o silêncio.
— Eles não eram estranhos? — comentou.
Ela não quis dizer "eles não eram estranhos"; o que ela quis dizer provavelmente nunca poderia esperar expressar, a não ser gritando, mas o cérebro humano possui poderes de recuperação fantásticos, e dizer “eles não eram estranhos" era parte do rápido processo de cura. Em meia hora, ela estaria simplesmente pensando que bebera demais.”(p. 342)

O real que se reestrutura no trecho acima é o palco de uma das mais impressionantes edições de Sandman, cuja história, aliás, começa justamente quando Sonho é submetido às forças do mundo real. Trata-se do número quatro de “Prelúdios e noturnos”, quando Morpheus enfrenta o demônio Colozon. O campo de batalha escolhido é a realidade, numa demonstração da força das palavras submetidas a um imaginário lógico de fenômenos mensuráveis e hierarquicamente organizados pela sua potência destrutiva e construtiva. A edição é uma ode à estabilidade das convenções do mundo real que, na mesma medida em que limitam o homem, são o veículo da criação de novos mundos onde ele poderá habitar. Por sua vez, condizendo com o caráter traumático que optar entre real ou fantástico acarreta em Gaiman, a punição mais poderosa dada por Oneiros ao mortal que o aprisionou é justamente o “eterno despertar”, ou seja, a experiência consecutiva do caráter regenerador do real e da impossibilidade de usufruir ativamente do devaneio.
A realidade irrompe como trauma também na pequena narrativa “Destrua”, genialmente desenhada por Dave McKean, usando o método da bricolagem, que elenca recortes como aqueles de cigarro do tipo “O ministério da saúde adverte...”, excerto que tapa os olhos da personagem em um dos quadros. Aliás, a narrativa gráfica Sinal e ruído, desenhada pelo mesmo artista, também interpreta em certa medida a luta entre a força da “vida real” e do projeto ficcional do herói. Por sua vez, o método modernista de McKean, baseado na revolução cubista de Braque e Picasso e seus papiers collés, nos quais a inscrição do mundo material “real” substituiria o trabalho da pintura, é uma maneira de introduzir uma nova, traumática, noção de realidade que surge contaminadora no eixo da representação. Por sua vez, em Belas maldições, o efeito é atingido através de dispositivo diferente. Um anjo, Aziraphale, e um demônio, Crowley, devem se adaptar à realidade do século XX (e depois lutam pela preservação desta mesma realidade), com o intuito de impedir o fim do mundo. Logo, a força da realidade e seus hábitos atenuam o caráter fantástico das duas criaturas a ponto de obrigá-las a seguirem suas convenções: “Crowley acendeu os faróis. Não precisava deles para enxergar, mas faziam com que os outros humanos na estrada ficassem menos nervosos. Então deu a partida e dirigiu devagar colina abaixo. A estrada saiu de sob as árvores e, depois de algumas centena metros, atingiu os arredores de um vilarejo de tamanho médio.” (p. 83)
No mesmo livro, em meio aos inúmeros seres e ocorridos estranhos/maravilhosos, o banal emerge soberano, quando a “Ruiva” abre certo pacote que deveria ser uma explosão de fantasia: “Ela a examinou. Era uma espada bem comum, comprida e afiada; parecia ao mesmo tempo velha e sem qualquer uso; e não tinha nenhum ornamento nem nada que impressionasse. Não era nenhuma espada mágica, nenhuma arma mística de poder e força. Era muito obviamente uma espada criada para cortar, fatiar, perfurar, de preferência matar, mas, não podendo, mutilar irreparavelmente um número muito grande de pessoas, na verdade. Ela possuía uma aura indefinível de ódio e ameaça.” (p. 113).
Nesses exemplos, como acontece em muitas partes do livro, o sobrenatural repete os costumes tradicionais do “real”, numa demonstração da força da realidade e da adaptação a ela em Gaiman. Tal profusão de artifícios ocorre, visto que Gaiman tenta resolver em suas obras algo que sempre foi uma preocupação de autores como Edgar Allan Poe, ou seja, como encadear pensamentos fantásticos? O problema enfrentado, que é um problema de representação, pode ser resumido da seguinte forma: como usar da lógica sintagmática padrão, funcional para descrever o que entendemos como real, na organização de universos compostos pela imprevisibilidade do fantástico? E digo mais: o fantástico enfrenta um problema básico de mimese, pois sinaliza para situações desconhecidas, mas por intermédio de uma linguagem, cuja função primeira é sinalizar, ou seja, atualizar conceitualmente itens já conhecidos. A respeito destas aporias, o narrador de Golias, revela: “Numa história de ficção, acho que teria me recusado a acreditar que aquilo estava acontecendo, teria me perguntado se tinha sido drogado ou se estava sonhando. Na realidade, caramba, eu estava lá e aquilo era real, então olhei para cima na escuridão e depois, como nada aconteceu, comecei a andar naquele mundo líquido, gritando para ver se havia mais alguém ali.” (p. 96). Esse trecho inverte o imaginário presente na maioria das obras fantásticas, pois aqui é justamente a insuficiência da realidade (e se fala de insuficiência, mas nunca de inutilidade) que garante a abertura para universos além dela. Obviamente, poucas linhas depois o real se regenera e o “tempo volta a correr normalmente” (p. 97). O texto não demora a inserir o herói no cotidiano normal novamente, ficção que será preferida à “verdadeira” realidade (como ocorre com o personagem Cypher em Matrix).
É por situações como essas que ler Gaiman não basta. É necessário sonhar Gaiman, isto é, meditar suas imagens como sendo uma faceta ficcional do imaginário, mas nunca compensatória ou simplesmente imitativa. Se lermos Gaiman assim, ele será só um best-seller bacana. Contudo, ocorre que em Gaiman há sempre um duplo drama. O da necessidade aventuresca do fantástico (e de sua ética) e o da fundamental recomposição do mundano. Ambos são um só. O real é um fantástico recalcado, o fantástico é o real sublimado. Como Tim Hunter aprende, o universo mágico é o nosso “distorcido” (o autor, na introdução de Fumaça e espelhos, defende que a ficção é justamente o efeito de um espelho “distorcido”), precisando de sua íntima conexão com o empírico, o que é expresso em closes em partes do rosto e em miudezas aparentemente irrelevantes do cenário, além de ser representado pelo leiaute caótico (p. 97, 82). O espírito da aventura empreendida ao fim é, portanto, a forma que o mundo tem de, pondo-se em movimento, se reestruturar. Há uma dialética de ímpeto e contenção, expressa nos inúmeros limiares, umbrais e passagens, as quais os protagonistas devem transpor. Este processo é o mundo mesmo se autoconhecendo e testando a eficácia de seus limites através dos personagens. No conto “Os fatos no caso da partida da senhorita Finch”, por exemplo, os personagens todos trabalham com ficção, logo temem que os outros não acreditem na história fantástica que terão de contar. A ficção molda o real livremente, portanto não precisa substituí-lo, assim como a fantasia. Além disso, a distinção feita por Sartre entre uma arte convencional ,“tética”, e outra “não tética”, maravilhosa, é insuficiente para ler Neil Gaiman.
É preciso sonhar Gaiman e, consciente disso, o autor recheou seus romances com inúmeras situações nas quais os personagens sonham, compondo um catálogo poucas vezes visto na literatura ocidental. Cheguei a começar uma enumeração destas cenas, mas isso poria fim em qualquer interesse a respeito deste artigo que já se alonga. Entretanto, o sonho ajuda Neil Gaiman, primeiramente, a enfatizar as bases alquímicas das transformações elementares que marcam sua obra. Há neles uma percepção da energia da matéria que quase supera os limites entre figurado e não-figurado. Esta lógica onírica está também no espaço deiscente de Os livros da magia, que em muitas páginas abre-se para todos os lados, representando a pura potência convidativa a todas as formas. É necessário lembrar que o sonho não tem história, como a noite, já disse Bachelard. E o narrador de “Um estudo em esmeralda” sonha em determinado momento do conto, “um sonho sem sol” (p. 29).
 Imprimir no sonho dos protagonistas o sentido de seu trajeto pessoal liberta momentaneamente o autor da lógica determinante da concatenação, necessária para o enredo de aventura. No sonho, os heróis emprestam pedaços de sua natureza a uma lógica sempre pré-subjetiva, ainda que passível de hermenêutica concreta pelo leitor interessado. Eis a grande ruptura de Gaiman, uma de suas ousadias maiores. No sonho absoluto, o ser só pode existir enquanto falência, portanto, o sonhador se desenvolve na plena aniquilação futura de si (por isso os “duplos” de Fat Charlie e a presença deles em Sandman, em Coraline...), mas o próprio sonho não tem futuro, apenas a realidade presente de sua manifestação o possui e, nela, o sujeito pode exercer um “ego” insolúvel, ainda que plenamente motivado pela natureza do devaneio. Gaiman corrói a difícil barreira onírico/real, permite que seus heróis sejam uma imagem paradoxal poucas vezes encontrada na literatura, a do sujeito sonhante, um cogito sólido e viável, mas pertencente ao sonhador, sendo assim, formula uma união impertinente do diurno e noturno. Afinal, “a imaginação não conhece o não-ser”, diz Bachelard (p. 161). Sendo assim, o tropo do “foi só um sonho” que geralmente é um clichê horrível, pode ser a poética de certos contos de Gaiman, a exemplo da resolução da história de Rose no arco “Casa de bonecas” de Sandman.
A narrativa de Gaiman funciona análoga à tessitura que o psicanalista constrói (ainda que sua natureza pragmática seja quase oposta), explorando um enunciado coerente a partir da experiência onírica do paciente. Contudo, diferente do método psicanalítico, por ser artisticamente orientado, permite que os abismos do ser sejam também experimentados, fruídos. É, portanto, um legítimo devaneio. Leveza e movimento contribuem, finalmente, com isso. O autor diz em mais de uma ocasião que a magia torna a metaforização supérflua. Acontece que, compartilhando com alguns preceitos caros a Bachelard, nos universos criados por Neil Gaiman, o peso da matéria desaparece (leveza) na sua capacidade operante (criativa), pois tudo que diz respeito ao concreto é movimento, transformação e, principalmente, intercâmbio. Por isso que, só enfrentando a realidade, a metáfora pode existir, pois evidenciando a diferença nos itens comparados, mantém a transitoriedade de cada item do discurso. Nesse sentido, e ouso afirmar, somente nesse, é muito parecido com Kafka. Nada é apenas “in presentia”, mas esconde valores e formas sempre “in absentia”, revelados pela potência mística do universo e que, quando encontrados, existem por si só, quase sem referência, livres de qualquer alegoria determinante. Por fim, quem já reparou que poucos casais inicialmente propostos pelas narrativas do inglês terminam efetivamente juntos? Em um mundo leve e em constante transformação, nem o tropo mais clichê da cultura ocidental, o do “casal feliz”, consegue resistir aos devaneios do escritor.

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A magia em Gaiman se funda em uma filosofia positiva, de aproveitamento afirmativo da sua presença na realidade. Já vimos que o real é o principal interlocutor da palavra fantástica nos enredos do inglês. A magia, portanto, nunca é realizada completamente e é sua incompletude que garante sua existência e nosso interesse renovado por ela. Lança uma dúvida aos referenciais aos quais estamos acostumados, mas promove no texto a sua regeneração, pois é necessário também acreditar naquilo que nos cerca e que nossos sentidos apreendem. A representação, por si mesma, nunca é plena e totalmente funcional. Saímos dos livros de Gaiman presos na eterna dúvida, desconfiados dos limites do real. Esta é a única “vacilação” que a obra do inglês propõe. Sendo assim, este movimento, esta busca onírica, esta vivência da narrativa em limites nunca totalmente transponíveis, garante às fábulas de Gaiman aquilo que Spinoza chama de afeto, ou seja, modos de pensamentos não representativos e que se traduzem a partir de uma volição, uma vontade, uma variação intensiva da potência do ser que não se confunde com seu objeto (passível de representação), nem com a ideia estável que temos dele (substituindo-a por sua formalidade intrínseca) e que talvez seja a fibra perene e inevitável do sonhar e da potência de agir que marca sua obra. Chegou a hora de relacioná-la com a tradição do fantástico.
Geralmente, os heróis de Gaiman aglutinam dois tipos de personagem - para seguir a tipologia de Frye, que fundamenta a principal discussão sobre o gênero fantástico no ocidente, ou seja, a de Todorov. Num primeiro momento, Shadow, Fat Charlie, o narrador de O oceano no fim do caminho, os humanos de Belas maldições, o narrador de “Golias”, Richard Mayhew são personagens que se situam no mesmo nível do leitor com relação às leis da natureza, o que os qualificam como protagonistas do gênero imitativo baixo. Contudo, logo eles sofrem a transformação que os situa no plano da lenda ou do conto de fadas, onde os heróis tem superioridade de natureza (inclusive pertencendo a clãs e seitas exclusivas) em comparação com seus leitores. Foi isso que desqualificou em certa medida a hipótese do canadense (que não previu a múltipla combinação das categorias que ele criou) e é isso também o que demonstra o valor diferenciado da “tragédia” (alienação do herói do mundo) em Gaiman, pois ela surge como libertação, já que o mundo do qual os protagonistas se alienam é o mundo limitado e sem projeções do leitor. De qualquer forma, há sempre um sentido cômico nas tramas do inglês que reconectam os protagonistas a outro mundo (neste sentido, o fim de Lugar nenhum e Belas maldições é muito significativo). Sendo assim, destruir totalmente o real, seria destruir o contexto hermenêutico de onde o leitor parte para construir seu imaginário, terreno abandonado pelo herói que acompanhou e por quem torceu. A escolha estrutural de Gaiman é de empatia catártica, deixando refiguradores miméticos rastreáveis (a realidade como força de conservação) para o leitor neles se apoiar. Isso explica a necessidade de que as imagens do autor insistam no livre trânsito do “trágico” ao “cômico” (sempre pensando com Frye), permitindo a passagem ininterrupta e multidirecionada do real ao ideal e do ideal de volta ao real.
Se não me engano, Louis Vax diz em um texto que o que marca o sobrenatural contemporâneo é a experiência de homens “como nós” que lidam com situações inexplicáveis. Mas já sabemos que os seres de Gaiman são “como nós” apenas no início de sua trajetória, logo descobrindo algo que os diferenciam, seja por intermédio das próprias personagens (Shadow, Tim Hunter), seja pela revelação de sua natureza desconhecida (Fat Charlie, Adam Young). Sendo assim, a “vacilação” todoroviana já não é mais tão importante, pois o estranho/maravilhoso aqui não exclui o real, sendo antes o centro irradiador dele. É assim que Gaiman lida com o terror visto por Lovecraft na condição de qualquer relato sobrenatural. Segundo o americano, a simples existência do fantástico aterroriza porque derruba as leis naturais, cuja manutenção da ordem seria nossa única salvação. Não à toa, Lovecraft nomeia a hesitação presente na obra sobrenatural de “suspensão maligna”. Em Gaiman, frequentemente o mundo natural é afetado, mas raramente vislumbramos aquela aproximação com o caos que o imaginário das obras de Lovecraft proporciona. O espanto não é erradicado, mas naturalizado, já que, ao final, tudo é alquimia e transformação. Mais uma vez, a leveza e a rapidez se manifestam como trunfo de Gaiman na sua perspectiva particular da literatura fantástica.
O sobrenatural serve à estrutura do romance contemporâneo como um desequilibrador definitivo no mundo, uma maneira de mobilizar o cinismo recorrente na sociedade atual em prol da narrativa, já que o mundo representado desvincula-se do contexto estabelecido e naturalmente promove a quebra de regras narrativas e sociais estabelecidas, como Todorov conclui. Mas quem leu Todorov deve se lembrar que o autor afirma tratar-se o fantástico justamente de um gênero cujo último suspiro se dá em Maupassant e cuja característica essencial é a hesitação diante do fora da norma. É aqui que Gaiman empreende uma nova etapa no desenvolvimento do gênero. Ao usar o potencial subversivo do gênero fantástico e ao mesmo tempo, ao evidenciar sem culpa a força regeneradora da “realidade”, ou seja, das normas convencionais nas quais estamos imersos, o autor permite que a vacilação hermenêutica do leitor não seja apenas em razão da verificabilidade ou não dos fatos, mas em relação do valor positivo emprestado à transformação radical do mundo conhecido.
No fantástico clássico tínhamos regras erigidas pelo mundo ficcional e só poderíamos optar em legitimá-las ou não em nossa leitura dos dados. Agora, estamos livres para esquecer o passado e “a metafísica da linguagem cotidiana” é abandonada em Neil Gaiman fortalecendo a presença constante do irreal dentro de si. De nós. Sendo assim, o britânico se posiciona entre a aproximação com o personagem e a adaptação de nosso imaginário ao desbravado por ele, entre Poe e Kafka, entre a alegoria e as forças poéticas do conto popular. As crônicas de gelo e fogo e certos momentos da saga de Harry Potter parecem fazer algo semelhante e talvez um dia eu me detenha em algum deles. Mas nenhum desses outros exemplos valoriza como Gaiman a vontade de fazer, expressa na excelente epígrafe de Coraline: “Contos de fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos.” (p. 4). Gaiman nos oferece o dragão e a espada e se situa como criador brilhante, geralmente ocultado ora pelo preconceito academicista tão ridículo quanto elitizado, ora pelos admiradores gratuitos que simplesmente cultuam um rarefeito legado pop tão elitista quanto o outro.



Autor: Daniel Baz